PEDOFILIA: CRIANÇAS EM APUROS NUMA SOCIEDADE APODRECIDA

O telefone tocou no Distrito Policial. Detrás da mesa, em meio aos relatórios de investigação, o delegado Rubens deu uma pausa em sua análise e atendeu o aparelho. Do outro lado da linha, uma voz enrouquecida balbuciava palavras com dificuldade. Rubens anotou algo e desligou o telefone. Chamou a equipe policial de plantão e entregou o papel ao capitão contendo o endereço no qual constava a denúncia. Ficou pensativo! É mais um caso de pedofilia na pequena cidade de Agreste. Perguntava-se: como alguém era capaz de tamanha monstruosidade? Talvez pela certeza da impunidade reinante no País...
 
Dessa vez a repercussão seria maior. O pedófilo da vez é um homem importante na sociedade agrestina, advogado, bem de vida. Entretanto, para Rubens aquilo era fato antigo. Desde sempre, a boca miúda, ele e a população eram cientes da prática asquerosa do maníaco; faltavam as provas. Igual a esse, inúmeros se valem do silêncio das vítimas e da retaguarda macia oferecida pelo uso do dinheiro e pela influência do poder. Aqui em Agreste compra-se tudo, inclusive a Lei. Assim, Rubens vivia sempre preso à angústia de não ter forças para mudar esse panorama e sendo, ao mesmo tempo, um Agente da Lei com suas mãos amarradas ao sistema.
 
A sensação de impotência abreviava quando, duas vezes ao mês, promovia palestras nas escolas públicas do município ou nos trabalhos comunitários realizados na Igreja. Nessas oportunidades, alertava as crianças e os adolescentes sobre seus corpos a fim de não permitir que terceiros toquem em certas partes; e se porventura acontecesse, eles deveriam comunicar imediatamente os pais ou algum adulto de confiança. E quando o abuso vem da própria família? Esse é um triste retrato recorrente no Brasil; onde, em 73% dos casos, o pedófilo faz parte do seio familiar e o crime ocorre dentro da própria residência da vítima.
 
Por ser um pesquisador e atuante na temática, Rubens ficou consternado ao ler o Relatório dos Direitos Humanos de 2020, no qual figurava, em referência ao ano anterior, 17 mil ocorrências de abuso contra menores. Dezessete mil vidas destroçadas! Isso só os episódios registrados nos órgãos competentes; milhares de outros camuflados existem Brasil afora dando conta do quão desprotegidas estão nossas crianças. Há uma relação direta entre o perfil de vulnerabilidade das famílias e a conjunção dos abusos; quanto mais insalubre for o lar da criança, com a extrema pobreza no entorno, mais suscetível ela estará em sofrer violência sexual.
 
Um alerta considerável emitido por Rubens, nas conversas com os pais e responsáveis das crianças, é no sentido de evitar que os filhos durmam fora de casa; afinal, em idade terna, os pequenos ainda não sabem se defender. Além disso, se faz necessário prestar atenção no comportamento da criança, principalmente quando esse foge à normalidade. Uma relação pautada em diálogo e carinho é suficiente para despertar desconfiança nos pais frente a uma postura estranha dos filhos. Não há razão para negligenciar os sinais, nem mesmo os sutis.
 
Rubens também se desespera com a dualidade seletiva operante no entendimento das pessoas. Para muitos, uma criança de seis anos, abusada em casa, é uma vítima; já uma outra de 12 anos, trajando roupas curtas e na beira da estrada se oferecendo aos caminhoneiros, é uma prostitua. Pensar dessa forma é aquiescer com a exploração sexual contribuindo com a  normalização dos abusos. Os dois cenários tratam-se de pedofilia, e nojenta! A segunda criança está naquela situação deplorável porque ostenta um perfil de vulnerabilidade social, já elencado no quarto parágrafo. Logo, tal condição exige de nós uma sensibilidade lúcida e o abandono do pensamento moralista.
 
O Disque 100 é o canal especializado para receber denúncias sobre abuso infantil. O denunciante pode manter o anonimato e ainda assim estará contribuindo para salvar vidas. Todo o esforço é válido na tentativa de ajudar as vítimas e em colocar os abusadores atrás das grades. Rubens, sem dúvida, se deleita toda vez que encarcera um pedófilo; pena o expediente ser pouco corriqueiro. Bom será quando todos esses elementos deletérios, acostumados a essa prática horrenda, forem presos, concluiu ele. Até lá, Rubens seguirá com seu trabalho tentando promover a Justiça no obscuro município de Agreste.