A propagação dos ultraprocessados e os seus impactos socioambientais

Nas últimas décadas, conheceram-se profundas transformações globais nos padrões alimentares de importantes consequências socioambientais e econômicas. A forma como nossas refeições são produzidas e consumidas não tem sido um episódio banal na história e deslocado da realidade. As técnicas de conservação e processamento dos alimentos, as conquistas da química e da microbiologia, da produção industrial, do desenvolvimento de transportes, são aspectos de um processo mais geral que envolve todo o sistema agroalimentar (CARNEIRO, 2003).

Atrelado a essa lógica, os principais itens que as gigantes dos alimentos (Danone, Nestlé, Kraft, etc.) comercializam, fazem parte de uma categoria específica de produtos: os ultraprocessados. Trata-se de formulações industriais derivadas de alimentos, mas que contêm quantidade excessiva de sódio, açúcares, gorduras e aditivos artificiais que de forma majoritária, trazem malefícios à saúde. Em cidades, como Recife e São Paulo, o seu consumo desde o romper da pandemia, aumentou de forma considerável[1].

A definição de ultraprocessados surgiu com a criação da chamada classificação Nova — presente no Guia Alimentar para a População Brasileira (2014), que organiza os alimentos em quatro categorias, segundo o grau de processamento: (1) in natura ou (2) minimamente (3) processados, ingredientes culinários, e, por último, os (4) ultraprocessados. Para o nutricionista, Carlos Monteiro (2010), diferente do que muitos pensam, o processamento de alimentos não é necessariamente negativo[2], mas se torna nocivo à saúde[3] quando sua finalidade deixa de ser alimentar as pessoas com qualidade e passa a ser fabricar produtos que, embora pareçam comida, não são.

Países como Reino Unido e Estados Unidos são os campeões do consumo dessa “imitação de comida”. No Brasil, apesar um forte cultura e padrões alimentares, segundo dados do IBGE, a população (principalmente os grupos mais pobres e vulneráveis) vem deixando gradativamente de fazer refeições preparadas com “comida de verdade” e trocando cada vez mais pelos ultraprocessados. Isso, claro, quando não sofrem de fome crônica e conseguem ter acesso a comida suficiente para atingir os níveis mínimos necessários para uma vida ativa.

Os respectivos itens são imensamente prejudiciais não apenas para a saúde coletiva, mas também para causa enormes prejuízos socioambientais e a culturas alimentares[4], além de inúmeros impactos negativos para populações urbanas e rurais, entre elas as comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Eles são produzidos de forma intensiva, por meio da constante exploração dos trabalhadores e demandam grandes quantidades de commodities, que por sua vez, impulsionam a monocultura — como a de soja, a de milho e a de cana-de-açúcar — ampliando o uso da terra e causando sérios danos que ameaçam e reduz a biodiversidade do país (PLOEG, 2008).

A fabricação desses produtos alimentares, envolve o uso intensivo de água e energia e tem como uma das principais consequências a geração de excesso de resíduos, como no caso de embalagens. Mesmo que as pegadas hídrica e ambiental dos ultraprocessados não serem tão altas quando comparadas a agropecuária extensiva, elas não deixam de gerar sérios impactos ambientais relacionados à sua produção, como o uso constante de materiais, entre eles o plástico.

Indo além, para lidar com a fabricação e consumo indiscriminado dos ultraprocessados, exige-se de setores da sociedade civil e de coletivos sociais, soluções complexas e multi-setoriais. A começar, se faz necessário uma outra concepção de “qualidade alimentar”. “Embora qualidade seja um termo contestável, entre os movimentos contemporâneos de alimentação há um grau razoável de consenso sobre o que se constitui um alimento de boa qualidade ou de “verdade”. (SCRINIS, 2021, p.370). O Slow food, muitos chefs, movimentos sociais do campo, costumam celebrar e/ou defendem o consumo de alimentos frescos, minimamente processados, cultivados e preparados de forma tradicional e sustentável (agroecológica/orgânica) em suas comunidades locais[5].

Uma série de iniciativas no âmbito global e local são necessárias para se organizar diversas frentes de lutas e reinvindicações para promover políticas públicas e profundas transformações estruturais. Em todo o país, diferentes soluções, ou pelo menos “algumas pistas” do que deve ser feito estão (in) diretamente relacionadas: maior cobrança e responsabilização do Estado, a alteração de regras de rotulagem de alimentos (à exemplo do modelo Chileno de alerta de triângulos), a reforma midiática (principalmente naquilo que tange à publicidade infantil); além de mudanças profundas nas políticas que envolvem a cidade/campo (à exemplo dos circuitos curtos de produção) e toda a estrutura agrária do país, sobretudo com base no fortalecimento da agricultura familiar e das práticas e modos de vida sustentáveis (agroecologia e agrofloresta), nos territórios locais. Daí, a defesa por uma alimentação mais justa e saudável, perpassa por projetos societários alternativos e pela busca por um novo paradigma através de profundas mudanças no sistema agroalimentar e financeiro.

Postado originalmente: https://inacandido.medium.com/os-ultraprocessados-e-os-impactos-socioambientais-7006d337a156

[1] Pesquisa nacional de saúde ´Percepção do Estado de Saúde. Estilo de Vida, Doenças Crônicas e Saúde Bucal (2019) <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101764.pdf>.

[2] O processamento de alimentos passa a ser nocivo à saúde humana quando sua finalidade deixa de ser a de alimentar populações com qualidade e passa a ser a manutenção dos lucros da indústria. Com o objetivo de criar produtos rentáveis, empresas de alimentos fabricam itens à base de commodities baratas, como o milho e a soja, e adicionam à fórmula açúcar, sódio, gordura, conservantes e outros componentes cosméticos que os deixam mais duráveis e palatáveis, segundo o texto.

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/06/02/O-que-pesa-contra-a-Nestl%C3%A9-e-os-alimentos-ultraprocessados

[3] Pesquisas recentes tornam mais conclusivos apontamentos de cientistas sobre os prejuízos causados à saúde. Elas servem de respaldo para políticas públicas. Para mais informações: https://www.bmj.com/content/365/bmj.l1451

[4] A cultura alimentar também é afetada por efeitos de massificação e apagamento, visto que o consumo de ultraprocessados ocorre no país inteiro, reduzindo nossa relação com a rica diversidade de alimentos e receitas regionais. Link para matéria: https://pp.nexojornal.com.br/perguntas-que-a-ciencia-ja-respondeu/2021/11-perguntas-que-a-ci%C3%AAncia-j%C3%A1-respondeu-sobre-ultraprocessados

[5] Para mais informações sobre a qualidade alternativa de alimentos ver a obra: Nutricionismo de Gyorgy Scrinis (2021).

Referências

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAUDE. Guia Alimentar da População Brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/guia_alimentar2014>. Acesso em: 17 set. 2021.

CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2003.

PLOEG, Jan Douwe van Der. Camponeses e Impérios alimentares: luta por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: Editora da UFGRS, 2008.

MONTEIRO, Carlos. Nutrition and health. The issue is not food, nor nutrients, so much as processing. Public Health Nutrition, v. 12, n. 5, p. 729–773, 2010.

SCRINIS, Gyorgy. Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional. São Paulo: Elefante, 2021. (Joio e o Trigo

Inã Cândido
Enviado por Inã Cândido em 19/09/2021
Reeditado em 19/09/2021
Código do texto: T7345553
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