BRILHA A LUZ NA CRACOLÂNDIA

Instituições atuam para resgatar marginalizados no centro da capital paulista

A Cracolândia, no centro de São Paulo, é uma daquelas regiões urbanas onde as pessoas só transitam por necessidade. Instalada no chamado Centro Velho da capital paulista, a área é freqüentada por moradores de rua, trombadinhas, prostitutas, menores abandonados, viciados e traficantes – daí o nome, alusão ao crack, uma das drogas sintéticas mais devastadoras e cujo comércio e consumo costumam ocorrer a céu aberto, particularmente à noite. Considerada pela polícia como uma das regiões mais violentas da metrópole, a Cracolândia é habituê no noticiário policial, a ponto de as reportagens sobre crimes ocorridos nas suas ruas já não chamarem mais a atenção de quase ninguém. A Prefeitura tem investido na reurbanização do espaço. O projeto de revitalização inclui a demolição de 55 prédios considerados sem valor arquitetônico, e que foram invadidos por moradores de rua. A proposta prevê sua substituição por conjuntos comerciais de alto padrão, além de imóveis destinados a atividades culturais e residências.

Antes mesmo de nascer, o novo bairro já foi até batizado: Nova Luz. Mas o que o poder público parece não ter condições de consertar são as ruínas humanas que transitam por ali. No vazio de ações oficiais, quem ganha força e espaço são os grupos evangélicos que fazem da Cracolândia e de outras áreas degradadas da cidade o seu campo missionário. Enquanto alguns grupos menores trabalham na arrecadação e distribuição de alimentos e roupas, outros vão além e oferecem uma verdadeira transformação por meio de desenvolvimento de relacionamentos, resgate da dignidade e uma nova vida calcada nos princípios cristãos. Essa é a proposta da Base Mundial de Missões, entidade criada há três anos e ligada à Igreja do Evangelho Quadrangular. O trabalho é coordenado pelo casal de pastores baianos Nildes e Jair Nery dos Santos, que já desenvolveram ação semelhante nas favelas de Salvador antes de aceitarem o desafio de criar as duas filhas adolescentes no “olho do furacão”, como eles chamam a região.

Atualmente, toda a família está engajada na causa social. “A idéia de se fundar uma base missionária aqui partiu do secretário nacional de Missões da Igreja Quadrangular, o pastor Jonathan Hall. Deus nos incumbiu de trabalhar à frente desse projeto”, conta a pastora Nildes. Apesar de conviverem com viciados, traficantes e prostitutas na sua Bahia, o casal afirma que nada se compara ao choque que sentiram ao ver tão explicitamente a degradação a que o ser humano chegou na Cracolândia. As diretrizes da Base Mundial de Missões obedecem a duas frentes: a primeira, treinando e equipando jovens voluntários para o trabalho missionário junto aos necessitados; e a outra, encaminhando-os para um centro de reabilitação e, posteriormente, ao mercado de trabalho. Além da Bíblia e do amor cristão, somente muito sacrifício, paciência e diálogo são capazes de alcançar almas tão embrutecidas pela vida. “Trata-se de um evangelismo prático, baseado na amizade. É um trabalho lento e que não tende a dar frutos imediatos – são necessárias horas e mais horas de conversa para se aproximar deles”, testemunha a pastora. Para contribuir na criação desse vínculo, as portas da residência do casal estão sempre abertas para um almoço ou café da tarde. Na maioria das vezes, as visitas – gente que a maioria das pessoas nunca receberia em casa – saem de lá de banho tomado e com roupas limpas.

A uma quadra de distância da casa dos pastores fica um espaço denominado “projeto retorno”, que se configura como um reforço da base missionária. Ali são realizados workshops de artes, culinária, costura e capoeira, entre outras atividades, além de alguns cultos e treinamentos para os obreiros voluntários. Chega-se então ao ponto crucial: a oportunidade para falar do amor de Deus, ou seja, a semeadura da Palavra para que a missão cresça e frutifique. “Temos esperança que um dia essa região ainda irá se chamar Cristolândia”, sonha Nildes.

Confiança – De origem batista, a ação social da Comunidade Evangélica Nova Aurora – ou, simplesmente, Missão Cena – já atua no centro de São Paulo desde 1987. No início, as atividades concentravam-se nas adjacências da Rua Aurora, área marcada pela prostituição. Quatro anos mais tarde, a entidade obteve reconhecimento oficial e ampliou sua ação. A Cena trabalha na reabilitação de pessoas marginalizadas, mas sem perder de vista a necessidade de prevenção. “É preciso haver também uma transformação nos corações destas pessoas”, frisa Madalena Hildebrandt, coordenadora da organização. Atualmente, fazem parte do quadro de obreiros da entidade pessoas que vieram do outro lado, ou seja, gente que foi recuperada pelo trabalho da missão e hoje dedica-se ao resgate de outros. “É bonito ver prédios reformados e limpeza urbana, mas se não mudar o ser humano, dificilmente se conseguirá mudar uma cidade”, comenta a obreira.

Para falar a língua das crianças e adolescentes que freqüentam e vivem na Cracolândia, o ministério Jesus Ama o Menor (Jeame) desenvolveu um projeto chamado Papo de Responsa. De caráter interdenominacional, a organização surgiu há 27 anos, primeiramente atuando na unidade Raposo Tavares da antiga Febem (instituição oficial de abrigo e ressocialização de menores delinqüentes). Mais tarde, o Jeame passou a se dedicar também às crianças e adolescentes que vivem em situação de risco na região central da cidade, muitas delas vítimas de abusos domésticos e sexuais – ou, mais freqüentemente, do consumo e tráfico de drogas. “Antes o quadro era muito diferente e bem menos crítico do que é atualmente”, alerta o missionário Oswaldo da Silva Junior, coordenador do ministério e membro da Igreja Batista do Bom Retiro.

Apesar da ajuda de doações provenientes de igrejas e entidades privadas, é impossível arcar com as despesas do trabalho e com os custos dos obreiros. Por isso mesmo, cada missionário do Jeame é responsável pelo seu próprio sustento. “Temos muitas dificuldades para conquistar a confiança dos menores. Por isso, procuramos fazê-los compreender o que estão perdendo ao se envolverem com as drogas”. Para isso, o Jeame desenvolve, além de atividades pedagógicas, outras de interesses comuns à faixa etária com que atuam, como vídeos, atividades esportivas e música – incluindo, é claro, louvor e adoração. Depois de estabelecida uma relação, cada caso é analisado e, dependendo da situação, o menor é encaminhado a instituições de reintegração social, como o Exercito de Salvação e Instituto Dom Bosco, entre outras.

A nova vida de Valdecyr

Valdecyr , de 18 anos, é um jovem tímido, loiro e de olhos verdes. Quem vê hoje o seu bom aspecto não imagina o que ele passou ao longo da conturbada adolescência. Aos 14 anos, ele deixou a casa dos pais em Santa Catarina e mudou-se para São Paulo com um de seus irmãos, em busca de novas oportunidades. Acabou submergindo no mundo das drogas, tornando-se viciado em cocaína e crack. Depois de perder o emprego, envolveu-se em pequenos furtos para alimentar o vício, e era constantemente forçado a mudar de pensão pelas circunstâncias em que se encontrava. “Eu achava que as drogas eram uma coisa boa, não acreditava no que me diziam. Se soubesse que seria assim, em vez de sair da casa dos meus pais teria arrumado um trabalho, estudado e freqüentado a igreja”, confessa, arrependido.

Vivendo nas ruas, Valdecyr um dia encontrou a Base Mundial de Missões, onde foi prontamente acolhido e encaminhado a uma casa de recuperação. Ele sabe que o caminho será longo e que é preciso andar no fio da navalha para se libertar – mas está disposto a dar uma guinada definitiva em sua vida. Dois passos importantes ele já deu: conheceu o Evangelho de Cristo e arrumou um emprego como garçom. “Eu segui um caminho errado, mas agora pretendo trabalhar e esquecer o passado”, garante.

“Não estou aqui por gosto”

Ela atende como Lia, seu nome de batalha, tem 45 anos e se prostitui na região da Cracolância, cobrando cerca de R$ 25 por programa. Inicialmente ela trabalhou como doméstica, mas ao passar por dificuldades financeiras, foi conduzida ao meretrício por uma amiga. Convive com os mais diferentes tipos de clientes há muitos anos. “Trabalhar na prostituição é ruim. Já vi gente morrendo”, revela. Lia tem uma filha de 12 anos, que desconhece a atividade da mãe como profissional do sexo. A prostituta tem uma clientela fixa – a maioria, formada por homens casados –, e não trabalha com os chamados cafetões, os exploradores das garotas de programa.

Lia é auxiliada pelas entidades sociais evangélicas que atuam no centro de São Paulo, e ressalta a importância deste tipo de trabalho: “Eles cuidam da gente, conversam, nos ouvem. Quando é preciso, nos levam ao médico”, enumera. No entanto, ela enxerga os assuntos ligados à fé com um olhar meio enviesado: “Eu tenho muita fé e não acho que Deus me condene pelo que faço. Não estou aqui por gosto, mas para sobreviver e dar uma vida melhor à minha filha.”

Entre a lei e a fé

Policial e evangélica, E.V., de 30 anos, pediu à reportagem para ter seu nome e imagem preservados. Membro da Igreja do Evangelho Quadrangular, ela tomou conhecimento do trabalho realizado pela Base de Missões por meio de um panfleto distribuído durante um congresso. A partir dali, interessou-se em fazer os treinamentos e se tornou mais uma das voluntárias do programa. “Mesmo no fundo do poço, qualquer pessoa pode deixar a marginalidade e ter um novo direcionamento na vida. Basta oferecer ajuda e atenção”, pontifica. Ciente dos riscos inerentes à sua profissão, ela diz seguir o exemplo de Cristo e amar o pecador, sempre procurando conscientizar as pessoas de que o crime não compensa. Embora tenha a obrigação de cumprir a lei dos homens, E.V. diz que consegue separar bem a profissão do ministério – assim, mesmo que precise prender criminosos, sempre busca oportunidades para falar-lhes do amor de Deus.

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JDM

José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 08/07/2008
Reeditado em 04/10/2022
Código do texto: T1070990
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