REQUIÉM AO PADRE VOADOR

"Padre que tentou voar com balões é sepultado no Paraná. "

Eu nunca tentaria voar com balões, eu que vôo todos os dias no mundo das minhas idéias. Também nunca voaria, sem necessidade, em um avião. Voar me atrai, exclusivamente, com a finalidade de me repelir. "Os opostos se atraem, os iguais se repelem." Sei que ficou a dúvida, mas a dúvida é apenas um outro jeito de pensar.

O sonho do padre voador ficou dentro de muita gente. Dentro de mim, ficou intacta a simpatia por um homem de cara boa, redonda e gorda, evocando "Marcelino Pão e Vinho" da minha infância.

Qual era o objetivo do padre ao tentar voar com balões? Essa é uma pergunta difícil de ser respondida. Porque os homens sempre sonharam em ter asas, mas é justamente a proximidade com essa solução tão previsível que dificulta a resposta exata. Não temos distanciamento suficiente para encará-la e nivelamos por baixo: mais um homem querendo voar.

Nos dias em que se seguiram ao desaparecimento do padre, eu desapareci um pouco de mim. No meio da noite, acordava pensando no padre, como se o padre me fosse meu, como se a última confissão tivesse sido a minha, como se o vinho da sacristia tivesse sido entornado por minha culpa.

Não, eu nem conhecia o padre. Mas que importância haveria em conhecer ou não conhecer? Importaria sim, encontrar o padre, com seu sotaque de padre, com seu jeito de padre, com a sua cara de padre, uma cara tão saudável, tão cheia de vida, o rosa da face se misturando ao rosa dos balões, o Deus do padre e o meu Deus, ambos unidos com um GPS poderoso na mão, uma lanterna na minha, eu e Deus vasculhando o oceano, à procura do padre.

Passaram-se os dias e nada do padre. Então, comecei a desejar que o padre não estivesse sofrendo mais, como eu estava. Eu, que nem paroquiana sou. Eu, que não sigo as leis de Roma. Eu, que nem precisava tomar essa hóstia das mãos do padre.

Depois de uma semana, com certo alívio, percebi que ele já não sofria e, portanto, eu não precisava sofrer também. Fui alforriada do sofrimento do padre, eu que já tenho o meu.

Mas hoje, quando vi a reportagem sobre o enterro do padre, me veio de novo a viva esperança de encontrar nesta reflexão as asas que lhe faltaram no vôo trágico. Porque a morte de um padre que teve o desejo de voar, como voa o dedo em riste das crianças, atados a balões cor-de-rosa, tem que manter, em meio ao luto e à dor, pelo menos, um cotoco de asas de anjos. Estou aqui à procura delas.

Quem sabe, ele quis enxergar o mundo, lá de cima, da perspectiva dos anjos. Quem sabe, ele quis mostrar, aos seus paroquianos amados que há um jeito de voar sem passagem, sem voucher, sem dinheiro. Ou talvez, anunciar aos seus colegas de púlpito, que nenhum homem precisa renunciar a asas, quando ganha uma batina. Talvez, quando menino, padre Ederli tenha sonhado que estivesse voando. E esse sonho, reincidente, a cada noite, lhe roubasse um pouco o brilho das manhãs. Talvez, naquele dia, sem suportar mais a espera por um par de asas, ele tenha tomado a decisão corajosa de roubar dos balões de gás, o impulso que lhe faltava para, finalmente, voar. E Padre Ederli voou.

Quem sabe, talvez, pode ser, é bem provável. Não há uma bússola que nos leve diretamente às razões do coração do padre. Porque a terra é muito extensa, porque o oceano é muito profundo, porque o céu é inescrutável, porque o coração de um homem não pode ser tocado enquanto ele vive, e menos, ainda, quando ele bate as asas e sobe.