Sobre o Direito de Ser Pai

A resolução de ter um filho nestes loucos dias em que vivemos não é fácil.

Não que outros tempos, menos confortáveis, democráticos e/ou violentos fossem evidentemente mais propícios à procriação humana, não. Deixamos para trás fantasmas como as altas taxas de mortalidade infantil, doenças infecto-contagiosas que dizimaram ou marcaram como inúteis gerações inteiras (a poliomielite como exemplo máximo), combatemos a exploração do trabalho infantil, aumentamos os níveis de escolaridade virtualmente em todo o mundo. Não, é claro que não estou falando da África ou de nossas favelas.

Fomos agraciados com outros vilões, porém. A violência outrora típica das cidades grandes espalhando-se pelo interior, o vício das drogas - cada vez mais facilmente disponíveis para os adolescentes, as mortes no trânsito, os cartões de crédito que prometem uma felicidade consumista e espontânea com o único intuito de recrutar novos inadimplentes como prisioneiros da malha de exploração econômica do “novo” capitalismo, a destruição das famílias com a vulgarização do casamento e do divórcio.

Destes, considero os dois últimos os piores. Não que eu seja contra uniões estáveis – pelo amor de Deus, se o fosse, não estaria vivendo com alguém que amo e respeito. Nem contrário ao estabelecimento do divórcio como solução para más escolhas. Muito menos a favor das famílias de mentirinha em que boa parte de nós fomos criados, mantidas ao custo de manobras extraordinárias cuja intenção era tão somente garantir a sobrevida de casamentos fracassados “até que os filhos fossem adultos”.

Acredito sim que uma relação sólida e sadia entre dois humanos viventes, quando é do desejo de ambos que esta dure mais que uma “ficada” ou um namoro, possa ser o que de mais belo experimentaremos neste mundo de dificuldades financeiras, profissionais e psicológicas.

Acredito também, contudo, que nossa sociedade não está preparada, nem do ponto de vista micropolítico, nem do ponto de vista legal, a fornecer suporte adequado às famílias desfeitas. Vivemos ainda numa era patriarcal-matriarcal, em que ao pai cabe o sustento e à mãe, a criação dos filhos. Isto fica evidente quando se trata de disputas no âmbito judicial, uma vez que o Novo Código Civil não nos agraciou com as mudanças que se fazem necessário para atender a mulher moderna, o pai responsável e a atual família brasileira. A Guarda dos filhos continua sendo monoparental, da mesma forma que no antigo Código Civil (1916), hoje quase centenário.

Disso resultam problemas graves que atingem um número cada vez maior de crianças e principalmente progenitores do sexo masculino – uma vez que, no Brasil, em 91% dos casos a guarda de filhos menores recai sobre a mãe. Como decisões favoráveis à guarda compartilhada são ainda raras em nosso sistema judiciário, estes pais vêem suas funções resumidas às de “pai provedor” e “pai visitador”, quebrando-se laços que deveriam ser protegidos por lei (entre a prole e o pai) e instaurando-se problemas variados de convivência entre as duas porções da família desfeita – o mais grave deles a Síndrome de Alienação Parental.

Esta Síndrome, descrita por definida pela primeira vez em 1985 pelo Prof. Dr. Richard A. Gardner, Professor de Psiquiatria Infantil da Universidade da Columbia (EUA), é “o denegrir sistemático de um progenitor pelo outro, com o intuito de alienar a criança do convívio do primeiro”.

Pais que sofrem este tipo de abuso experimentam sensações de perda, tendência à depressão e/ou agressão.

Filhos que sofrem privação de convívio com um dos progenitores são mais propensos a distúrbios psicológicos. A ligação entre a criança e o pai alienado estará irremediavelmente destruída e, com efeito, não poderá ser restabelecida sem que se passe um hiato de alguns anos. O pai alienado passa a ser um estranho para a criança, e seu modelo psicológico passa a ser o do outro progenitor, que detém a guarda e instaura o processo, por apresentar-se mal-adaptado à separação/divórcio e reagir a esta de forma disfuncional.

Uma conjunção de fatores (pai alienado do convívio mais modelo familiar incompleto e patológico) parece ser causa de inúmeros problemas psiquiátricos para a prole, como a depressão crônica, a incapacidade de “funcionar” dentro de um contexto psicossocial normal, problemas de construção da identidade, desespero, sentimentos incontroláveis de culpa, tendência à desorganização, sentimentos de isolamento, podendo chegar até ao desenvolvimento de neuroses específicas como a Síndrome de Ansiedade Generalizada (Generalized Anxiety Disorder ou GAD) e a Síndrome de Hiperatividade da infância. Na juventude e idade adulta, há correlação estatisticamente significativa nos (poucos) trabalhos existentes sobre o assunto com maior propensão ao tabagismo, à drogadicção, ao alcoolismo, à criminalidade e a tendências suicidas.

A Síndrome de Alienação Parental pode e deve ser incluída como uma forma de abuso à infância. Como vimos, seus efeitos não são somente temporários, mas podem acarretar problemas psicológicos, psiquiátricos e sociais pelo restante da vida do indivíduo.

Estados americanos como Califórnia, Texas e Pensilvânia já possuem jurisprudência sobre o assunto, cada vez mais discutido nos foros legal e científico. Já a União Européia vem discutindo desde 1992, quando um tribunal alemão recusou-se a permitir o direito de visitação de um pai a seu filho fora dos horários pré-estabelecidos, uma vez que o filho se recusava a vê-lo. O tribunal instruiu que estas visitas fossem realizadas somente com o acompanhamento da mãe e de um psicoterapeuta de sua escolha. Esgotados todas as possibilidades de apelação, e ainda impossibilitado de conviver com seu filho, este pai dirigiu-se à Corte Européia de Direitos Humanos demandando justiça e reparação contra a Justiça alemã. Ele invocou o Artigo 8 da Convenção dos Direitos Humanos que diz que “toda pessoa tem direito à sua vida (...) e família (...)” e que “a autoridade pública que exerce o direito previsto pela lei deve estabelecer medidas que, dentro de uma sociedade democrática, visem preservar a saúde ou a moral, ou a proteção dos direitos e liberdades dos outros(...)” Neste caso, conhecido como “o caso Elsholz” a Corte Européia deu razão ao querelante e condenou o estado alemão a pagar 476000 marcos à título de reparação moral. Desde então, a Alemanha incluiu medidas preventivas e punitivas em relação à Síndrome de Alienação Parental em seu Código Civil.

Isto mostra que, independente das leis nacionais, o interesse superior da criança inclui o acesso fundamental ao convívio com seus dois pais.

Estudos multidisciplinares levados a termo principalmente por Gardner e colaboradores, vêm estabelecendo subdivisões da Síndrome baseadas em características psicossociais das famílias e gravidade dos sintomas apresentados pela(s) criança(s) envolvida(s). O tratamento é multimodal e deve incluir dois braços principais: jurídico (responsável pelo atendimento legal ao progenitor alienado, pela indicação de um terapeuta único que trate em conjunto a ambos os ex-cônjuges e a prole) e médico-assistencial (que forneça o “feedback” necessário para a Corte instituir as medidas cabíveis quando necessário, que podem resultar até mesmo em troca da guarda nos casos mais graves).

É. A resolução de ter um filho nestes loucos dias em que vivemos não é fácil. A possibilidade de poder conviver com eles ao longo de sua própria vida, e ao longo da infância deles, está sendo severamente ameaçada neste país. Contamos com leis arcaicas, pouco ou nada alteradas com o advento do novo Código Civil, e com uma estrutura judiciária tão lenta quanto ideológica e cientificamente atrasada.

Um exemplo brasileiro? Venho lutando na Justiça pelo direito de conviver com meus dois filhos menores (L., sete anos e P.J., cinco anos) há pelo menos dois anos. Neste espaço de tempo, minha experiência como cirurgião de crianças tem notado como minha imagem de pai tem sido lapidada na mente de dois garotos indefesos, como minha ausência (involuntária e obrigatória) tem os distanciado de mim, como os problemas de inadequação tem afetado seu rendimento escolar, como as seqüelas de uma separação traumática têm ocasionado sérios problemas psicológicos, principalmente a um deles. Neste processo, mais de um ano foi gasto com troca de acusações mútuas através de réplicas e tréplicas que, a meu ver, não têm sensibilizado aqueles que deveriam estar lá, como executores da Lei, a proteger meus filhos. Outro ano (e algum dinheiro) foi gasto com uma perícia psicológica em mim e na mãe, bem como nos dois meninos, que foi amplamente favorável à ampliação geral dos horários de visitação paternos, mas não diagnosticou a Síndrome (apesar de eu haver exposto todos os sinais inequívocos que encontro em meus filhos). O resultado foi encaminhado à Justiça no final de julho passado. Desde então, aguardo.

E estou lá, final de semana sim, outro não, esperando meus filhos descerem do prédio armados com arminhas de brinquedo e agressões verbais, muito esporadicamente aceitando me acompanhar, na maioria das vezes faltando com o respeito à minha pessoa sob o beneplácito inerte da progenitora, dizendo “não querer vir”. Como hoje mais uma vez.

Em março teremos uma “audiência final”. Pergunto, em face do que conhecemos de nossa sociedade, de nosso sistema judiciário e de decisões anteriores: o que posso esperar? Nada? Ou um bla-blá-blá inócuo que nunca será respeitado, deixando tudo como está?

É. Pensemos bem antes de ter um filho com alguém, principalmente se formos homens e tivermos a paternidade como um sonho de vida. Neste caso, devemos estar cientes de que o mundo... é das mulheres.

Gostaria de ter um pouco mais de fé.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 18/02/2006
Código do texto: T113285