Sobre o Carnaval e quem não gosta de samba

Debato-me incomodado pelas afirmações - invariavelmente repetidas nesta época do ano – de que “o Carnaval não é mais o mesmo”, “antigamente era mais espontâneo”, “virou ‘macumba pra turista’”, etc; de que o Sambódromo tornou os desfiles mais frios, de que depois da Beija-Flor inovar com o luxo de Joãozinho Trinta nos anos 70 não houve mais nada de novo, depois do “Carnaval de Palha” da Vila Isabel (Kizumba – Festa da Raça) nos anos 80 não houve mais inovação, etc, etc de novo.

Por isso senti-me confortado com o artigo de Zuenir Ventura n’O Globo de sábado (de Carnaval!) exaltando, não necessariamente nesta ordem: o conforto do Sambódromo, a tacada certeira da construção da Cidade do Samba (utilizando velhos galpões do Porto do Rio, pertinho da Sapucaí) – que possibilitou a utilização dos galpões originais de várias escolas como quadras (a Vila Isabel, campeã, por exemplo, não tinha quadra até ocupar seu espaço na Cidade), e a imensa e renovada criatividade dos carnavalescos das Escolas do Grupo Especial.

Da mesma forma, digna de nota foi a coluna do sempre antenado Artur Dapieve na véspera, comentando sobre a “resistência do samba” e perguntando: “resistência” à quê?, quando Zeca Pagodinho é o música mais comprado, vendido e disputado do país, quando CDs de samba vendem como nunca, quando a Lapa ferve todo final de semana não importa quantos novos bares de samba, chorinho e outros ritmos brasileiros se abram, no único lugar onde o Rio ainda tem vida noturna?

Bingo! Parecia que Dapieve estava prevendo: é quase uma unanimidade que este foi o maior e melhor Carnaval do Rio nos últimos anos! Muitos blocos reuniram dezenas de milhares de pessoas, assustando até seus próprios organizadores, que não sabiam como dar conta de tanta gente – só o “Cordão do Bola Preta”, o mais tradicional da cidade, ressuscitou a manhã de sábado no centro com qualquer coisa entre 150 e 200 mil pessoas!!! Em cada esquina parecia nascer um novo bloco, uma nova festa, um pagode, um batuque...

Já quanto ao Desfile das Escolas de Samba, “quem não gosta de samba bom sujeito não é”. Sorry, amigos não-foliões, não é nada pessoal. O cara pode até não gostar. EU mesmo não era o maior fã. Achava bonito, acompanhava pela TV para ver as peladonas quando era adolescente, gostava da Mangueira pela história e pela tradição. Assisti meu primeiro desfile ao vivo em 2003, quando já morava há dez anos no Rio e garanto: deveria ser um dever cívico de cada brasileiro estar lá, ver de perto o que este povo consegue fazer, pelo menos uma vez na vida.

Porque é lindo e emocionante, sempre – como em 2004, quando pela primeira vez se permitiu o resgate de sambas-enredo do passado, até de outras escolas; como neste ano em que, pela (minha e humilde) ordem, brilharam intensamente a Mangueira (esta, especialmente, realizou o desfile mais bonito que já vi), a Beija-Flor, a Unidos da Tijuca e a Vila Isabel. É realmente “o maior espetáculo da terra”, chavão mais que batido na falta de outro que explique como é que do povo desta cidade - que apanha diariamente do crime organizado, da violência urbana não-coibida, do descaso de seus governantes e até do clima – pode surgir tamanha demonstração de brilho, criatividade, civilidade e organização.

Tenho uma teoria. Ou melhor, duas.

A primeira é sobre os críticos do Carnaval do Sambódromo. São pessoas que dizem de um filme ou de um prato de comida: não vi (não provei) e não gostei. Porque há os com sensibilidade para se encantar com a transmissão televisiva, mas sem estar lá, sambando e cantando a cada nova escola (e é impossível não se arrepiar quando passa mesmo a bateria mais fraquinha), não se pode dizer que se conhece o que é o Desfile.

A outra é sobre a “grande explosão” (TM Beija-Flor) do carnaval carioca neste ano de 2006. É o povo cansado, usurpado, vilipendiado e escravizado pela situação política, econômica e até mesmo cultural do Brasil (onde um ingresso de cinema beira os vinte reais), dizendo pra si mesmo e pra ninguém: “olha aqui, isto é o Brasil, isto é o que somos, isto é o que somos capazes de fazer – e não esta m*** toda que vocês têm feito de nosso país”. Como na época da Ditadura, a criatividade mais uma vez floresce na dificulodade, seja no gênio de Paulo Barros (carnavalesco da Unidos da Tijuca) e na perfeição técnica e emoção suprema do desfile da Mangueira (injustamente não-premiada), seja na alegria espontânea e desconexa das ruas, onde se viveu um clima de festa que se julgava perdido.

Ou como diria o belíssimo samba de Wilsinho Paz, Noel Costa, Alexandre Moraes e Silvio Romai (Beija-Flor 2006):

“Brilhou, no universo refletiu

Uma grande explosão

A mãe Terra enfim surgiu

Do céu uma imensa tempestade desabou

Nas águas se manifestou a vida

Assim ao longo de rios e mares

Surgem civilizações

Com arte e sabedoria

A liberdade buscar

Um novo mundo conquistar”

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 01/03/2006
Código do texto: T117542