Deusas, Imagens e Idolatria

O pagão e mundano panteão de deuses brasileiros passou por um acontecimento inusitado há algum tempo. A miss Joseane de Oliveira perdeu a coroa e esteve nas páginas da revista Playboy do mês de março de 2003. O motivo deste destronamento foi o casamento da ex-rainha, que vai contra as regras dos concursos que elegem as representantes de Vênus na terra. Uma “confusão” que chama a atenção para um evento muito pouco lembrado hoje em dia.

Este incidente fez surgir a questão: por que uma miss não deve ser casada? O que estaria por trás desta proibição que restringe as possibilidades da vida pessoal de uma celebridade? Haverá motivos in-conscientes para se impor regras e limites ao poder da fama e do sucesso? Esta dupla sempre está sujeita a uma etiqueta altamente constrangedora, que concerne mais ao público do que à celebridade.

As grandes mulheres são, para aqueles que as adoram, como deusas e, desta mesma forma, como grandes mães. Lembrando Freud, para quem um “deus é um pai glorificado”, as deusas, rainhas e misses são mães glorificadas. Como que fazendo o inconsciente lembrar de quando queríamos a mãe só para nós, o grande fetiche feminino é como uma deusa-bruxa-prostituta que a todos pode amar, e para isso não deve ser casada. Através dela podemos satisfazer o desejo de uma mãe sem marido, aquele pai inoportuno e constrangedor que a toma para si. O fato, no entanto, de se enfocar aqui as admiradas mulheres não exclui os admirados homens da mesma lógica. (Parece, aliás, que até a idéia de um Deus-pai sem sua Deusa — como é o caso do Deus cristão — tem o poder de satisfazer mais as mulheres do que os homens.) Mas, na lógica do sexo forte/sexo frágil, é quase inconcebível que, num casal real, o homem não seja a figura mais importante. Felizmente ou infelizmente, isso muda cada vez mais.

Se buscarmos exemplos nas mitologias e na história política, veremos que a maioria das deusas e governantes do sexo feminino mais populares são descomprometidas. A imagem de Hera, rainha do O-limpo ao lado do grande Zeus, era bem ofuscada pela sábia e virgem guerreira Atena e pela exuberante e livre Afrodite. Cleópatra do Egito, com seus amantes romanos, não tinha um faraó para si. Elizabeth da Inglaterra, aclamada em todo o mundo, permanece sem um rei ao seu lado. E não esqueçamos da mãe de todo o mundo cristão, Maria Virgem (que tem por pai de seu filho um inefável e abstrato ser).

As celebridades da modernidade, na maioria artistas, estão numa situação parecida. No entanto, não existe para as atrizes o tabu do casamento. Celebradas mais pelos papéis que desempenham no cinema (e, mais raramente, no teatro) do que por suas verdadeiras personae, é como se sua profissão permitisse aos fãs sonhar com elas no papel que suas imaginações concebem. Pouco importa se Catherine Deneuve está casada com Marcelo Mastroiani; na mente dos emtusiastas, ela é la belle de jour. Isto também deve ocor-rer com as cantoras, que em suas canções encarnam um eu lírico diferente. De modo geral, aqueles que interpretam são tomados mais por suas obras do que por suas personalidades. Mesmo assim, costuma-se comemorar o solteirismo de atores e atrizes.

No caso de Joseane, é celebrada por algo que é próprio a ela: seu corpo. Para os fãs da encarnação da Beleza, um deus ao seu lado, mesmo que secundário em importância, seria um detalhe embaraçoso. Como que para compensar a perda de divindade, transformou-se a ex-miss em mulher de papel. Não se trata mais, nas fotos da Playboy, de Joseane Oliveira, mas de um ensaio com pretensões artísticas. Não seria Joseane a retratada nas páginas da revista, mas, sim, um personagem ao qual ela empresta o corpo. Agora, manuseada como se queira por quem a compra, se transforma também no que se queira na imagi-nação destes onanistas. Como uma imagem de santa que serve de amuleto para se alcançar o gozo espiri-tual (análoga e inversamente) o ensaio erótico é um placebo que ajuda a alcançar o regozijo da carne.

Thiago Leite
Enviado por Thiago Leite em 19/04/2005
Código do texto: T12051