LOUCO É ELE. NÓS SOMOS LÚCIDOS.
ANA MARIA RIBAS.

Um artigo publicado sobre Vincent Van Gogh, na revista Veja, fez-me pensar um pouco mais. Que pensar é matéria de que gosto muito. Não sou uma aficcionada por arte, não tenho os pré-requisitos culturais necessários para admirar a pintura dos gênios. Tenho em casa uma única tela, assinada por artista de reconhecido talento e, as demais, são da minha filha Silvia. No campo das artes, minha maior referência é ser amiga de uma consagrada artista plástica carioca: Monique Hecker. Suas aquarelas são belíssimas e há pouco tempo recebi convite para uma exposição no Museu Nacional de Belas Artes do Rio. Fiquei inchada de alegria por ela estar no MNBA. Lembro-me bem: quando as minhas crianças eram crianças, Monique sentava-se com elas, lápis e giz de cera por todo lado, ao chão, e ali se compunham obras. Que eram de arte, e eu não sabia: tão leiga sou. Acho lindas as aquarelas e os quadros de Monique,  como também acho linda a tela de Kenji Fukuda, em aço escovado que tenho em casa há mais de 20 anos, como também acho maravilhosas as telas de Silvia Bernardelli. De onde se conclui, facilmente, que não sei distinguir uma obra,  de real valor artístico, de outra obra de valor apenas nominal, ou sentimental. Mas sei algo de gente. De gente, eu conheço um pouco. E pensar em gente é matéria fantástica.
 
Van Gogh gostava de entardeceres. O entardecer é a hora trágica. A hora em que não se tem o brilho do sol para iluminar as alegrias e nem para afrontar as  dores. Se Van Gogh tinha fascínio por entardeceres, mesmo equivocado com as demais frações do dia,  é porque o crepúsculo lhe era a hora menos desconfortável. A hora em que tudo combinava com tudo. O entardecer combinava com as suas telas noturnas, com a sua orelha mutilada, com os seus porres de absinto, com a sua visão do mundo. O entardecer era ele.
 
 Van Gogh tinha amizades tumultuadas com pessoas do mesmo sexo. E daí? Daí que isso sugere um jeito de ser apaixonadamente vivo. Não me interesssa se esse jeito de ser apaixonadamente vivo,  incluía  uma opção sexual não muito bem definida. Estou falando de seres humanos e não de genitálias. Estou falando de alguém que tendo preferência pelo escuro da noite, também se ilumina numa paixão corrompida por obscura posse. A posse do outro. Esse amigo é meu, Vincent dizia: - “não empresto, não vendo, não exponho  e não dou.”  
 
Van Gogh era um leitor compulsivo em vários idiomas: tinha que ser! E mantinha o costume de transcrever trechos de romances e poemas. Os seus próprios, ele escrevia em telas, buscando a palavra no claro e no escuro de seus fantasmas que apenas o seguiam, mudos, calados, delineados em sombras.
 
 Van Gogh tinha pensamentos suicidas. Esses pensamentos lhe foram tão recorrentes que acabou por sucumbir a um deles – a um único deles, no dia em que, verdadeiramente  estourou-se com um tiro no peito.
 
 Pensamentos suicidas sempre ocorrem em luz e sombra. A luz ilumina o pensamento quando o potencial candidato a suicida, imagina-se em seu próprio velório, ele mesmo assistindo aos velantes, enxugando-lhes  as lágrimas derramadas por sua partida,  o amor e a importância que, em vida lhe foram negados, subitamente adquiridos. Tudo aquilo que, supostamente, para alguém que viva em sombras, pode ser a única luz no fim do túnel. Mas a sombra, e não a luz, é o destino: o último lampejo de lucidez desamparada antes  da solidão da passagem, antes do insólito  absurdo.   O caminho sem volta no túnel – do tempo para a eternidade. 
 
Van foi esse homem angustiado, de cachimbo na boca, de boina na cabeça, de orelha mutilada,  de entardeceres tristes, de paixões enlouquecidas. Todos os ingredientes perfeitos que formam um gênio, o gênio que precisamos para nos sentir, finalmente comuns, normais  e lúcidos. Louco é ele.
 
 Contudo, nada é perfeito e os homens teimam em procurar uma mínima imperfeição no gênio, até que essa imperfeição apareça. Pois conseguiram: reviraram as cartas que ele escreveu, numa indiscrição tamanha, apenas para descobrir que esse cara era um estudioso dedicadíssimo às técnicas: noventa por cento de transpiração e dez por cento de inspiração, a julgar pelo que, esta semana lhe atribuíram.  Um sujeito meticuloso, que fechava a cortina, que acendia o abajour, que colocava fogo nas achas da lareira, apenas para “explorar exaustivamente as possibilidades de “chiaroscuro”, o termo em italiano usado para designar o contraste de claro e escuro, de luz e sombra.”
 
Essa revelação é irrelevante, des-importante e extremamente improdutiva. Como se depois dos séculos tombados, tivessem, finalmente achado, o pedaço da orelha perdida. Precisa-se tanto de um gênio louco nesse mundo de sanidades apenas aparentes, e quando se consegue patentear um Van Gogh, que se pensava pintar enlouquecidamente, em surtos de extrema concentração divina, entregam-nos, agora, um estudante de belas artes, aliando a técnica à disciplina. Nada mais prosaico e sem glamour. Nada mais dois olhos, um nariz, uma boca e duas inteiras orelhas.
 
Eu quero a orelha sem pedaço. Quem roubou a minha orelha sem pedaço?
 
 Saber que Van Gogh gastou seis meses apenas estudando a melhor maneira de obter um único quadro “ Os Comedores de Batata”, tela de 1885, que foi considerada a sua primeira obra de real valor, só me mostra que, na arte como na vida, tudo deve ser feito com cuidado, com medida, com dedicação.  Mas, convenhamos: 118 anos depois da sua  morte, encontrar o pedaço da orelha perdido, além de trágico e inútil, é quase cômico. O que se faz com isso?
 
 
* As informações foram colhidas da Revista Veja, edição de número 2080. 

* A aquarela, da coleção "Matéria Poética" é da artista plástica carioca Monique Hecker.