Diagnóstico tardio

Receio que nossa medicina esteja perdendo a capacidade investigativa, por assim dizer. Lamentavelmente, tenho razões de sobra para afirmar que os ditos médicos especialistas, salvo cada vez mais raras exceções, não estão enxergando além dos limites da sua especialidade, numa espécie de visão míope ou foco restrito às partes do corpo humano que lhes dizem respeito. Não se pode perder de vista que nosso corpo é, essencialmente, um sistema complexo e integrado, e, assim sendo, deve ser visto como um todo, e não em partes isoladas ou estanques.

Tratam-se sintomas - é o que me parece -, sem muita preocupação em investigar a fundo quais seriam as verdadeiras causas do problema - que podem estar relacionadas a outras áreas ou especialidades -, em que pese todo o aparato tecnológico à disposição dos profissionais da área de saúde.

Em dezembro de 2005 minha mãe começou a sofrer de uma coceira pelo corpo, que foi se agravando com o tempo. Desde então, passou por mais de uma dezena de "especialistas", das áreas de alergologia, dermatologia, cardiologia, neurologia, infectologia, gastroenterologia e clínica médica. Realizou uma batelada de exames - de sangue; testes alérgicos, os mais simples e os mais complexos; endoscopias digestivas; e até duas ou três biópsias de pele. Nada foi encontrado, mas cada especialista ministrava seu tratamento. Foram quilos (quilos mesmo, sem nenhum exagero de minha parte) de medicamentos de uso interno e de uso tópico. E nada!...

Os diagnósticos foram os mais variados. Encabeçando a lista, a tal da dermatite atópica, ou atopia. Acreditem se quiserem, mas teve até um dermatologista que receitou a ela remédio para escabiose (a popular sarna) - mas como, se ela não tinha esse problema?... Outro, chegou a receitar remédios para parasitas intestinais, para bicho geográfico, e por aí foi... Houve também um médico alergologista/dermatologista, com uma bela clínica e fila de pacientes na confortável sala de espera, que veio com um diagnóstico inusitado, ao menos para mim: "escoriações neuróticas", dizendo com toda convicção que ela nada tinha de alergia, infecção cutânea ou qualquer outra enfermidade física, pois seu problema seria meramente de fundo emocional, e a cura estaria na mudança de postura diante da vida, perante si mesma. Eu quase embarquei na dele, mas minha mãe se recusou a aceitar tal diagnóstico e lá não voltou mais...

A favor dos médicos, digamos assim, um parêntese: mamãe tinha doença de Chagas, desde menina-moça, dos tempos em que morava na zona rural do interior de Goiás, onde nasceu. Essa doença, incurável, atacou-lhe o coração (leve dilatação do músculo cardíaco e arritmia moderada, controlada à base de idas rotineiras ao cardiologista e medicamentos por ele prescritos, por anos e anos a fio) e também o esôfago (refluxo gástrico). Isso pode até ter mascarado a verdadeira causa de seu problema (a seguir revelada), infelizmente descoberta tardiamente, mas será que justificaria essa falta de visão sistêmica de tantos médicos?!...

Pois bem, no início deste ano um médico "acertou" com um tratamento à base de corticóides, fazendo com que aquela coceira generalizada finalmente desse alguma trégua. Foi como se ela renascesse, recuperando o gosto pela vida. A alegria de sempre voltou, e ela chegou até a ir a Aparecida do Norte, em viagem de agradecimento pela "cura" alcançada.

Mas essa alegria durou apenas uns poucos meses. De repente, ela começou a enfraquecer, a perder a vontade de comer, a coceira começou a se manifestar novamente; até que, após a realização de uma (traumática) endoscopia digestiva, para ver a quantas andava o "velho" problema do refluxo gástrico, passou a tossir ininterruptamente, dia e noite. Era uma tosse seca, que lhe foi minando a energia. E os médicos a afirmar que aquela tosse seria decorrente do tal refluxo gástrico...

Tanto ela enfraqueceu, que seu médico (o do recente tratamento à base de corticóides) resolveu interná-la para "tomar soro". Como a tosse não cessava com remédio algum, e ela passou a apresentar dificuldade respiratória crescente, ele resolveu pedir o mais banal dos exames, até então (nos últimos quase três anos) não solicitado por nenhum dos tantos médicos que a atenderam e que dela "trataram": um simples RX do tórax. Veio então a "bomba", algo totalmente inesperado: um enorme tumor no mediastino (região entre os pulmões e o coração), bem maior que uma laranja das grandes. Na seqüência, veio uma tomografia computadorizada, detalhando a tal "massa", que segundo os especialistas seria um linfoma (de 70% a 80% de probabilidade de se tratar de um câncer no sistema linfático). Entretanto, uma biópsia se fazia indispensável, pois os médicos precisavam saber exatamente de que tumor se tratava, para ministrar o tratamento específico adequado.

Isso foi entre os dias 09 e 12 de setembro deste ano. Eu havia estado com ela até o dia 31 de agosto, e voltei a vê-la (no hospital) no dia 17/09 à noite. Levei um susto, pois ela havia emagrecido muito em tão pouco tempo, e quase não conseguia mais andar (até a primeira metade de agosto ela estava dirigindo seu carro, o que adorava fazer). Corremos, então, com as providências para a cirurgia (para a biópsia, já que o tumor era do tipo que não pode ser operado), realizada no limite da sua capacidade física.

A cirurgia foi realizada com competência, mas veio uma pneumonia hospitalar, depois a UTI, a sedação e a entubação, a primeira sessão de quimioterapia, a falência múltipla de órgãos, e, em 06 de outubro, a morte, aos 69 anos de vida!

O que ainda me faz acordar no meio da noite, todas as noites desde então, é o fato de que se esse câncer (a biópsia confirmou o linfoma, do tipo Hodgkin) tivesse sido descoberto uns três ou quatro meses antes, poderia ter sido tratado (por quimioterapia), regredido e até curado. E ela ainda poderia estar aqui, para viver muitos anos mais.

Aquele prurido intenso e generalizado por todo o corpo (que quase chegou a enlouquecê-la), segundo a opinião de vários médicos com os quais conversei recentemente, incluindo os oncologistas que a assistiram, e seu cardiologista (mais de dez anos tratando com ele), poderia perfeitamente ter sido causado pelo linfoma (corpo estranho que sensibiliza o sistema imunológico, que reage, e por aí vai...). Fácil deduzir isso agora, não?!... Tardiamente, porém...

Decidi fazer este relato com a intenção de alertar a quem interessar possa, a quem eventualmente possa estar vivenciando ou venha a passar por uma situação parecida. Questionem seus médicos, e até sugiram exames, por que não? Nessa atitude mais ativa de nossa parte, pode estar a diferença entre viver ou morrer...

Fica a seguinte questão, para reflexão: de um modo geral, estaria faltando vocação aos nossos profissionais da área de saúde (médicos, em particular), ou seria o nosso sistema educacional que está tão deficiente a ponto de não prepará-los adequadamente? Ou ambos?...

Que Deus nos proteja!