Jacobus van Wilpe e a espiritualidade

Terça-feira, 27 de Janeiro de 2009

Criado na rigidez extrema do luteranismo evangélico, Jacobus era versado na Bíblia, possuia refinado pensamento crítico e ideias próprias.

Sua primeira alegada lembrança era de um grupo de manchas de sangue no piso da cozinha, que sua mãe (Oma Helena) dizia ser anterior à ocupação do apartamento por sua família.

Aos quatro anos de idade, foi instado por seu irmão mais velho, Hermen (de seis), a "aproveitar a ausência dos pais" para fazer um experimento. Foram até a sala, na noite escura, e ao se acercarem da velha (e pesada) mesa de jantar, levantaram-na até mais alto que suas cabeças, apenas com os indicadores de uma das mãos cada, um de cada lado. Segundo Ko, a mesa "parecia não ter peso", e foi só quando entendeu o que acontecia que ele - no susto - deixou seu lado cair com um estrondo. Hermen nada explicou naquele momento e não deixou que Ko jamais tocasse no assunto.

Aos doze anos de idade, Jacobus pintou um cartão-postal em aquarela para seu tio, hospitalizado por uma apendicite aguda, que o devolveu, impressionado, dizendo que tal obra-prima deveria permanecer com quem a criou. Parecia ter pintado por toda vida, já em seu primeiro trabalho. Já pensou se Jacobus houvesse nascido em uma família kardecista, o que pensaria?

Aos quinze veio ao Brasil, onde só descobriu que não falava português - mas sim um caipirês multilíngue, cheio de erros e regionalismos - quando foi à cidade pela primeira vez sozinho, alguns anos depois. Durante o (pouco) tempo em que morou em Carambehy, conseguiu arranjar encrenca com o pastor - um alemão que residia em Ponta Grossa e eventualmente rezava um culto no Templo, reunindo os fiéis das várias denominações que havia na colônia.

Primeiro aproveitou-se da presença do religioso em um aniversário de criança, de um de seus irmão menores - quando com muita dificuldade dona Helena conseguira juntar os ingredientes para um bolo, convidando o pastor após o culto - para expor seus pensamentos sobre o pecado original:

"Imagine o senhor um pai dito amoroso, que ponha dois bolos na mesa e diga aos filhos, crianças: "Deste vocês podem comer, do outro não". Seria justo este Pai? Por acaso Ele não sabe que seus filhos são crianças?"

Depois reagiu com mal humor ao ser interpelado pelo pastor por trabalhar em uma manhã de domingo: "Mas afinal, o sábado foi feito para o homem ou o homem para o sábado?"

Quando já trabalhava como mecânico em Castro - e pintava cartazes para o cinema e o circo, duas de suas paixões - sonhou com um caixãozinho rosa que, na vida real, no dia seguinte, albergou a filhinha de um colega de trabalho.

Fatos como este ocorreram ao longo de toda sua vida, repetidas vezes e sempre de maneira imperfeita, tornando-o incapaz de prever o que aconteceria e com quem, ou onde, ou quando, mas causando-lhe terrível sofrimento. "Não desejo isto para ninguém, Fent" e "não pode ser bom este tipo de coisa, não devemos procurar desenvolvê-lo", dizia ele, reunindo sem saber boas doses de racionalismo ateu, conservadorismo cristão e puro e confesso medo.

Hermen permaneceu na fazenda em Carambehy, ajudando os pais, enquanto Jacó foi fazer a vida mundo afora. Apenas durante a Guerra aquele manifestou vontade de viajar, uma vontade que daria com os burros n'água com a febre que quase o mataria no porto de Santos, nos anos quarenta, quando estava prestes a embarcar como soldado. Jan iria, Franz serviria aqui mesmo no Brasil, como brasileiro que era: já Jacobus... deve ter sido o primeiro holandês a alegar "impedimento de consciência" para se recusar ir à guerra. "O que pode ter contra um camponês ou operário alemão este holandezinho imigrante, há quase um quarto de século no Brasil, para atravessar o mundo e ir matá-lo na Europa?"

Na rotina diária de Hermen, antes disso, porém, carregar a carroça de leite e seguir até a cooperativa em passo lento era tarefa cumprida duas vezes por dia, pela manhã e à tarde. Quando passava pelo arroio, ali onde se diz que há um tesouro enterrado pelos monges, há sempre um deles - pelo menos um - sentado a seu lado enquanto a estrada corta o capão de mato. Quando ela abre para o campo, Hermen estará sozinho de novo. E - óbvio - ficará irritado se alguém questionar; nunca responderá uma pergunta sequer sobre o assunto.

Quando sua filha Karin nasceu, Jacobus negou-se a batizá-la. "Depois de adulta ela poderia escolher sua religião", dizia ele. Quando ela resolveu casar com um rapaz católico e foi batizada ali na Igreja de São José, em Ponta Grossa (a metros de onde Jacó e Ilse viriam a morar até o fim de sua vida), ele não se opôs. Gostava do edifício (“um verdadeiro templo, imponente, clássico, silencioso”) e o frequentou - esporadicamente - com prazer. Gostava de conversar sobre religião, quanto mais se o interlocutor era culto e aberto ao diĺogo, e nunca se furtou a expressar suas opiniões, conquistando assim o respeito de amigos como o Padre Jack (Padre John Petter O’Connell, fundador do Encontro Matrimonial Mundial no Brasil) e o Padre Giuseppe Bugatti (principal nome na criação e expansãão do Instituto João XXIII, principal orfanato da região).

Há um conceito estabelecido entre os van Wilpe: quando um quadro cai da parede sem explicação aparente, alguém morrerá. Não consegui descobrir se este sortilégio acompanha a família desde a Holanda; o certo é que aqui se iniciou nas mesmas circunstâncias em que Ko pre-viu a morte por afogamento de um parente muito próximo.

Quando Jacobus morreu, três de seus quadros estavam em exposição na galeria do Banco Banestado, no centro da cidade de Ponta Grossa, à época tradicional incentivador das artes plásticas na região. A curadora contaria a Karin e Ilse, quando foram lá buscar os quadros, ainda consternadas com o passamento de Ko, que todos os três quadros, um a um em noites diferentes, caíram da parede sem explicação lógica. Nenhum quadro de qualquer outro artista (e eram bem uns quarenta) caiu durante aquele período. Detalhe: ela não sabia da crendice dos van Wilpe.

Meu avô Jacobus nunca me disse se tinha medo de sonhar com a própria morte. Tinha um medo discreto da própria, isto eu sei, pelo tanto de vezes que manifestou-me seu interesse indisfarçável de saber “se havia algo do lado de lá”. E detestava acordar banhado de suor, apavorado, em sua cama ao lado de Ilse, sempre pela manhã bem cedo, antes das seis, tentando adivinhar quem era, e se era mesmo, e esperar.

“Só um café pode me salvar, Ilse”, dizia ao acordá-la gentilmente, para que ela o fizesse. Você entende: o medo paralisa e congela.

(Já o Pe. José Bugatti dizia que Deus é onipotente, comunica-se conosco do jeito que lhe apraz)

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 01/02/2009
Código do texto: T1415920
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