A Cadeira no Penhasco

A “Cadeira no Penhasco” faz alusão a uma reentrância na rocha de um penhasco da ilha de Guernesey, localizada no Canal da Mancha, onde Victor Hugo ficou exilado durante o Segundo Império francês e escreveu sua maior obra ("Os Miseráveis", 1862).

Em seu romance seguinte, "Os Trabalhadores do Mar" (1866), protagonizado por Gilliat e sua amada Déruchette, a Cadeira Gild-Holm-Ur é para onde o primeiro se retira para sonhar em frente ao mar, sob o perigo de ser apanhado pela alta da maré. É também ponto de partida de sua guerra particular contra a vida e a desigualdade social, pelo amor e pela auto-superação; e ponto de chegada de sua trajetória indescritível – misto de aventura e épico, onde a luta do Homem contra os Elementos tem sua máxima expressão na Literatura Ocidental.

Muitos têm V.H. como um exemplo de literatura superada, arcaica e romântica demais para esta era de videoclipes, mensagens instantâneas e internet a cabo. Parte de sua obra continua viva, contudo, nas repetidas adaptações teatrais e cinematográficas de “Os Miseráveis” e de “O Corcunda de Notre Dame”. Esquecem-se os primeiros do sucesso inenarrável de sua trajetória como romancista, poeta e agitador político na conturbada França do Século XIX, da celeuma em torno de suas exéquias em “solo sagrado” ao morrer em 1885 (uma vez que, além de não ser católico, havia dedicado parte de sua vida ao estudo do espiritismo e negara-se a receber os últimos sacramentos), dos mais de um milhão de franceses que acompanharam seu cortejo fúnebre no que foi chamado de “maior enterro da História”.

No entanto, detenho-me na “Cadeira” (cujo nome, derivado de língua celta ancestral, significaria “quem-dorme-morre”) por várias razões. Excetuando-se os animais de fábulas diversas, o Hades da lenda de Orfeu, os moinhos do Quixote de Cervantes ou o Inferno de Dante, a Cadeira Gild-Holm-Ur é talvez o primeiro “personagem” não-humano de um livro de ficção. Talvez toda a ilha de Guernesey - Éden arcaico e supersticioso onde V.H. sofreu e superou os traumas da bem arquitetada expulsão de seu país - mas especialmente a Cadeira.

Presente no romance como amálgama de todas as lendas da região, espécie de porto para as andanças (terrestres e marítimas) de Gilliat, ela representa todos os momentos, na vida de qualquer um, em que se faz necessário enxergar a vida do alto. Naquelas pequenas ilhas, tidas hoje como verdadeiros paraísos – exemplos de cidadania responsável e lassidão, ausência de grandes impostos e criminalidade – um homem se encontra com seu destino. Sentado numa saliência na rocha, localizada sobre um fiorde de vista belíssima (reza a lenda que, em dias claros, de lá se enxerga a costa britânica), é da Cadeira que o herói de V.H. reflete sobre sua vida pregressa, planeja sua ação de resgate do motor a vapor de um navio encalhado (propriedade do pai de sua paixão platônica) e enxerga os meios pelos quais ascenderá socialmente para poder desposá-la. É lá também que se liberta de sua condição humilde, deixa a alma transpor os limites da imaginação e encontra forças para ousar tarefa hercúlea e solitária.

Obviamente, tarefas “hercúleas e solitárias” não combinam com sucesso, e Gilliat sucumbe ao final da missão: é tragado pelo mesmo mar que tantas vezes avistou de seu ponto privilegiado de observação. Mas não, se o leitor não passeou pelo livro, não me queira mal por contar-lhe o final. Nada pode tirar prazer de refeição sabidamente saborosa por saber-se de antemão saciado. Não deixe de ler o livro por isso.

Concentre-se na metáfora, permaneça na cadeira ainda um pouco mais. Veja a vida do alto, enxergue os horizontes escondidos que as colunas de concreto que sustentam sua vida urbana o impedem de enxergar. Com o devido distanciamento crítico, permita-se fugir durante alguns momentos, esquecer de suas limitações, buscar o inalcançável nem que seja meramente em sonho. Permita-se sonhar – mas não durma. O ciclo das marés diuturnas pode pegá-lo desprevenido. Confie nos velhos e no povo e nas antigas superstições: pontos de parada são necessariamente pontos de partida, donde saímos renovados e confiantes, embora jamais saibamos o que o futuro nos traz.

Numa imagem belíssima, antítese de uma obra voltada para eventos que ocorrem externamente, alheios à vontade do Homem – não nos esqueçamos que estamos a décadas do romance psicológico - V.H. brinda-nos com palavras imortais:

“A nossa pupila diz que quantidade de homens há dentro de nós. Afirmamo-nos pela luz que fica debaixo da sobrancelha. As pequenas consciências piscam o Olho, as grandes lançam raios. Se não há nada que brilhe debaixo da pálpebra, é que nada há que pense no cérebro, é que nada há que ame no coração. Quem ama quer, e aquele que quer relampeja e cintila. A resolução enche os olhos de fogo; admirável fogo que se compõe da combustão de pensamentos tímidos.”

(Alguns amigos não estavam conseguindo acessar esta matéria, publicada originalmente no jornal "O ESTADO DO PARANÁ" em 12.03.2006, através do link, por isso resolvi disponibilizá-la aqui tb.)

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 22/04/2006
Código do texto: T143083