Classe Média em Queda Livre

Significâncias esquecidas por detrás do trivial dia-a-dia desaparecem na teia de enganos que regem as relações sociais no Brasil.

Avaliamos exaustivamente, nas últimas décadas, o “poder” – de minha parte o prefiro entre aspas que em letras maiúsculas - e seus personagens sucessivos, com a Imprensa exercendo papel relevante e imprescindível no desvendar de significados outrora desconhecidos e/ou censurados. O advento da mídia eletrônica, a dar voz e platéia para novos nomes através da velocidade crescente de seus mecanismos de propagação de idéias e debates, trouxe-nos até o momento atual, em que cada cidadão tem a oportunidade de tornar-se um cronista de seu próprio tempo.

Resta-nos aprender ainda o que fazer com o volume de informação disponível, separar joio e trigo, e mais que isso, desenvolver respostas. De nada adianta o conhecimento que não leva à ação – que o diga a apatia popular perante escândalos políticos que de tão freqüentes perderam o sentido, de tão escabrosos anestesiaram nosso poder de indignação. Neste e em tantos governos, em tantas esferas da vida pública nacional.

Já o crescimento urbano descontrolado, especialmente nas grandes cidades brasileiras - trazendo consigo o desmantelamento das estruturas de assistência social herdadas dos governos militares, a espiral descontrolada da violência (e do tráfico) e a perda iminente de mais de uma geração de brasileiros pobres e sem chance de ascensão social pelo trabalho honesto - tem dado origem aos mais variados tipos de debate filosófico, produção artística e atividades beneficentes.

Hoje está na moda falar da favela, do menino de rua, do traficante e do bandido como se, somente ao se encarar tal realidade frente a frente pudéssemos ser capazes de entender o Brasil. Não digo que não. Assim como não nego quão essencial é conhecer a fundo as maracutaias de Brasília.

Tem feito falta, entretanto, nessa busca por um retrato fiel da Nação, voltarmos os olhos um pouco mais para esta abstração que se convencionou chamar de “a classe média” brasileira. Obcecados por esmiuçar os meandros da corrupção governamental e da “vida” de celebridades da hora ou dispostos a chamar a atenção para o que acontecia no assim chamado “andar de baixo”, nossos jornalistas, intelectuais e artistas vêm esquecendo do olhar horizontal que talvez explique mais a realidade que vivemos.

Entre janeiro de 2002 e dezembro de 2003, o PNAD (Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio) mostrou que o percentual de indivíduos cuja renda média familiar excedia R$ 1.000 caiu de 33,21% da população para apenas 31,29% desta, numa amostra bastante significativa do soterramento gradual desta fatia da população. Se utilizarmos dados do mesmo projeto da UNICAMP para abordar o período que vai de 1981 a 2002, incluídos agora dados sobre aqueles abaixo da linha de pobreza, veremos que estimadas 11,1 milhões de pessoas foram rebaixadas ou bloqueadas socialmente pela piora das condições gerais, o que corresponde ao crescimento populacional geral daquele período. Segundo estudos do mesmo grupo (“Folha de S. Paulo”, 14/11/2004), nos últimos anos a classe média brasileira teria perdido 1/3 de sua renda e, 2,5 milhões de pessoas perderam a condição de classe média.

Em contrapartida, o Governo federal “comemora” o aumento do consumo, pelo segundo ano consecutivo – 2005 - pela chamada Classe C (que ganha entre 4 e 10 salários-mínimos), aparentemente sem notar a relação entre este fato e outro, que qualquer cidadão que passeie pelo Centro de nossas cidades já reparou: a venda ilimitada de crédito. Tanto que as operações de crédito do sistema financeiro cresceram 1,1% no mês de fevereiro e atingiram total de R$ 615,6 bilhões, o que equivale a 31,3% do Produto Interno Bruto (PIB), que é a soma de todas as riquezas produzidas no país (dados do Banco Central). No Estado do Rio de Janeiro, mais de 50% da população tem comprometida a metade de seus salários em pagamento de empréstimos (“O Globo”, março de 2006).

Numa época em que já se tornou fato corriqueiro trabalhar quatro meses por ano tão somente para pagar impostos e taxa, em que todos sabemos quem são os maiores beneficiários da política de altos juros praticada pelo Governo Federal, a agiotagem está definitivamente instalada e oficializada, e o seu uso é única saída para a sobrevivência da maioria de nós. Chega a ser paradoxal que o mesmo mecanismo que torna mais atraente operar no mercado financeiro que financiar produção esteja, na outra ponta da corrente, incentivando o consumo.

Ficam registradas aqui, na visão extremamente reducionista que o espaço permite, o retrato de uma política que não é de hoje - e sim resultado de décadas de desequilíbrio, bem como dados que nos permitem levantar suposições várias. O achatamento da classe média acarreta diminuição de sua capacidade produtiva, da oferta de empregos e do consumo (inclusos gastos com educação, cultura, lazer e saúde). Somente uma reforma tributária ampla e alinhavada com os vários segmentos da sociedade pode reverter este quadro, permitindo instalar no país uma verdadeira cultura capitalista. O aumento da oferta de crédito a amplas parcelas da população, se não acompanhado de uma redução drástica nas taxas de juros que permita o seu uso para viabilizar a abertura e manutenção de pequenos negócios, é falácia irresponsável que acabará por comprometer todo o processo de crescimento, lento porém sustentado, da economia brasileira.

Por fim, muito se fala na miséria como agente propulsor da violência, mas pouco ou quase nada sobre o papel da dificuldade de ascensão social pelo trabalho honesto na gênese da corrupção. Enquanto vivermos assim, estaremos sempre a criar oportunidades de – com o proverbial “jeitinho brasileiro” – transformar cada pequeno administrador, em especial da máquina pública, em um ser corruptível. Afinal de contas, “todo mundo faz”, “se eu não fizer, outro faz”, “se eu não fizer, posso não ter outra ocasião como essa para tirar o pé da lama, vou morrer pobre...”

É deste modo, no seio da classe média renegada e maltratada, que nascem os artífices da crise moral e ética generalizada por que passa nossa sociedade.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 07/05/2006
Código do texto: T151671