RÁDIOS: COMUNITÁRIAS OU PIRATAS?

Rádios comunitárias cristãs defendem-se da acusação de pirataria e reforçam seu papel evangelístico e social

“Que você tenha um dia maravilhoso, espetacular, abençoado!” É assim que, diariamente, o locutor e diretor Wilson Roberto Junior começa o programa Celebrai, transmitido por uma rádio comunitária de Heliópolis, região carente da zona sul de São Paulo. O caráter da emissora já é denunciado pelo próprio nome: é a Missões FM, cuja programação tem orientação evangélica. Ela é apenas uma entre as centenas de emissoras do gênero que operam na capital paulista. E esse número ganha proporções inimagináveis quando se pensa no resto do país. A maioria funciona em esquema quase artesanal, transmitindo dos fundos de residências ou de pequenas salas alugadas em edifícios comerciais. No caso das evangélicas, como a Missões, as transmissões também podem ser feitas de templos ou espaços nas dependências das igrejas.

Entende-se por comunitária a rádio sem fins lucrativos, administrada por um conselho da comunidade e voltada para a prestação de serviços à região onde se localiza. Outra característica é sua potência reduzida – máximo de 25 watts. Numa cidade com tantos edifícios como São Paulo, há rádios que não conseguem exceder seu sinal para além de 1 quilômetro, limite máximo imposto pela Lei 9.612/98, que regulariza – ou pelo menos tenta – a questão. Contudo, muitas vezes o alcance do sinal contradiz o que demanda a potência, podendo chegar a até uma área de 50 quilômetros, dependendo da localização da antena e da topografia da região. E é aí que reside o problema. Apesar do caráter das rádios que se dizem comunitárias ser eminentemente social, nem todas têm respeitado as determinações legais. Muitas faturam, e muito, com publicidade e promoções de todo tipo, sobretudo em anos eleitorais. Com isso, ganharam inimigos de grande poder de fogo como as principais empresas que controlam as comunicações no país, além da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, a poderosa ABERT, órgão responsável pela defesa dos interesses dessas organizações.

“Nós não somos contra as rádios comunitárias, mas somos contra a ilegalidade. Se a emissora funciona em conformidade com o que diz a lei, não há problema algum”, defende Rodolfo Machado Moura, assessor jurídico da entidade corporativa. “Há muita rádio pirata que se diz comunitária. Para funcionar, uma emissora tem que ser autorizada pelo Ministério das Comunicações, cumprir todas as exigências e passar pelos trâmites legais”, lembra. O que realmente importa para muitos empreendedores do setor não é a capacidade da transmissão e a qualidade da programação, mas a contribuição para a melhoria nas condições de saúde, educação e cultura nas comunidades emergentes. No caso das evangélicas, a principal motivação é pregar a Palavra de Deus. Para evitar dor de cabeça, muitas rádios tendem a se instalar nas regiões mais carentes e distantes dos grandes centros urbanos e áreas consideradas estratégicas de comunicação, de maneira que não invadam a freqüência e interfiram no trabalho das chamadas emissoras oficiais.

Segundo a ABERT, no Brasil há aproximadamente 8 mil rádios oficiais e cerca de 3 mil comunitárias. Quanto às piratas, o número já passaria de 10 mil. Mas se, por um lado, o crescimento vem tirando o sono de grandes grupos do setor de comunicação, a maioria dos profissionais da radiodifusão brasileira vê com bons olhos esse trabalho, isso quando a emissora representa, de fato, os interesses e anseios das comunidades. No caso das evangélicas, que geralmente ocupam suas transmissões com cultos, pregações e música gospel, o termo “pirata” chega a ser recebido como ofensa. “Nosso trabalho é de natureza essencialmente espiritual e de prestação de serviços”, defende-se Moisés Ricardo, diretor e comunicador da Top Gospel, pequena emissora sediada em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. “É leviana essa precipitação em englobar todos no mesmo pacote.”

Embora opere em freqüência reduzida, a Top Gospel alcança três bairros da região, dependendo do horário. “Nossa rádio é mantida com ofertas e o pessoal todo trabalha como voluntário”, explica Ricardo. No seu entender, as rádios comunitárias representam a democratização do direito à opinião. “Aqui, divulgamos o trabalho de bandas iniciantes que jamais teriam espaço nas rádios comerciais”, comenta. “Temos programas de pequenas igrejas da região e abrimos nosso microfone para que os servos de Deus, por mais humildes que sejam, possam exercer seu ministério. E recebemos inúmeros relatos de conversões graças ao nosso trabalho”, comemora.

Fé e obras – Pastor da Assembléia de Deus de Taubaté (SP) e ex-locutor da extinta rádio Comunitária Filadélfia, Jorge de Souza Antunes mostra-se indignado com as críticas. “É preciso acabar com esse mito de que rádio comunitária derruba avião ou interfere na comunicação policial. Rádio comunitária só procura fazer bem ao próximo, ao contrário de rádio pirata, que não tem nome, endereço ou telefone.” Formado em teologia pela Escola de Educação Teológica da Assembléia de Deus, o pastor também defende as rádios comunitárias como importantes veículos de recuperação de vidas. “Além de tudo, elas têm alcançado presidiários com a mensagem do Evangelho e mudado muitas vidas. É só pesquisar nos presídios da região para ver quantos detentos foram transformados em cidadãos de bem a partir das mensagens transmitidas por essas emissoras”, destaca.

Por ser uma emissora voltada para a propagação da fé cristã, a Missões encontrou na Igreja Jerusalém Comunidade de Heliópolis a parceira ideal para colocar em prática o seu propósito. Todos os projetos sociais empreendidos pela congregação são prontamente apoiados pela rádio. Em sua sede, são ministrados cursos de alfabetização, espanhol, inglês e informática para pessoas de todas as idades, sem qualquer custo. Por meio de doações, moradores do bairro também usufruem de uma biblioteca, que atualmente conta com um acervo de mais de 2 mil títulos, entre livros didáticos, romances, conhecimentos gerais e, é claro, literatura cristã.

De acordo com Wilson Junior, que também é pastor, a rádio surgiu pela necessidade e o anseio da comunidade em ter acesso a boa música e informações referentes à região – segundo ele, o tipo de serviço que nem sempre interessa às grandes rádios. “Temos uma programação musical de qualidade, além de jornalismo, informações educativas de saúde e ainda dicas de eventos culturais. Ao contrário de outras emissoras que só trazem notícias ruins, nossa proposta é de apoio e incentivo aos ouvintes”, observa. Numa época em que termos como responsabilidade social são constantemente usados como estratégias de marketing pelas empresas, as rádios comunitárias parecem ter incorporado muito bem esse conceito. É o que acontece com a Missões, que opera há apenas dois anos mas já pode ser considerada “top” no quesito de utilidade pública e prestação de serviços.

Mesmo assim, Junior se queixa das dificuldades legais para o funcionamento de uma emissora do gênero: “O processo para conseguir licenciar uma rádio comunitária é demorado, a documentação é a mesma de uma oficial. O que diferencia é o propósito social e o alcance do sinal.” Além de ouvinte assídua, a psicopedagoga Denise Lemos Patrício da Silva também colabora com os projetos da emissora, ensinando espanhol e apresentando um programa semanal chamado Encontro de casais com Cristo, líder de audiência entre o público feminino da região. “A rádio contribui muito com a comunidade, seus louvores tocam os corações e isso ajuda a evangelizar as pessoas”, comenta. Ela própria já provou desse remédio quando se tornou voluntária, experiência que a levou a fazer o curso de Saúde na Comunidade voltado para radialistas, ministrado pela Universidade de São Paulo. “Eu vim a Jesus graças à música e ao envolvimento no trabalho social. A rádio também fez com que eu chegasse ao ministério de louvor”, orgulha-se. E a experiência positiva vivida por Denise incentivou seu marido, Fernando Ferreira da Silva, que ela mesmo chamava de “crente morno” a também se tornar membro da entidade. Atualmente, ele é o responsável pelo programa Evangelizando no esporte, que sempre apresenta em seus quadros a história de um craque do passado, recheado com resultado de jogos e mensagens bíblicas. Fernando Santista – como é conhecido, numa alusão ao seu time de coração – também é coordenador de esporte no bairro. “Antes eu estava envolvido com escolas de samba, mas depois que aceitei Jesus muita coisa mudou em minha vida. Encontrei amigos verdadeiros e até recebi homenagem pelo trabalho que realizo aqui com as crianças.”

Identificação com o ouvinte – O cantor, compositor e pastor pernambucano Armando Filho é outro que só tem elogios ao trabalho das comunitárias. Embora hoje seja um artista consagrado no meio evangélico – é autor, entre outros sucessos, de Nenhuma condenação há, O mover do Espírito e Cura-me –, Armando reconhece que o apoio de rádios de pequeno porte continua sendo fundamental para sua carreira. “Elas contribuem muito para a divulgação de minhas músicas pois, ao contrário das rádios oficiais, tocam por prazer e não visando apenas retorno comercial.”. Para ele, esse tipo de iniciativa é muito importante para o Reino de Deus. Com isso, a propagação do Evangelho acontece de uma forma muito mais abrangente. “A maioria das rádios oficiais atinge um grande número de pessoas e, por terem uma visão estritamente comercial, não atendem às necessidades de um determinado grupo. Ao contrário, numa rádio comunitária a participação do ouvinte é muito mais ativa e próxima, pois faz parte do seu convívio social”, faz coro o músico e pastor André Paganelli.

Atualmente responsável pelo programa Encontro pessoal, da rádio Trianon de São Paulo, que pertence ao Grupo Gazeta, o advogado e delegado de polícia Wellington Newton Marinho recorda quando iniciou sua carreira numa pequena emissora de Itapira, interior paulista. “Foi uma experiência muito gratificante. Considerando que o alcance de uma rádio comunitária é restrito devido a exigências legais, o contato com o ouvinte acaba se tornando mais íntimo e o retorno, mais rápido. O locutor conhece e se aproxima mais da realidade do bairro”, opina. Para o policial, as rádios comunitárias são importantes porque representam mais opções para os ouvintes. “As comunitárias não prejudicam as demais. O problema são mesmo as piratas e algumas que se dizem evangélicas mas invadem a freqüência de outras emissoras”, sentencia.

Para as gravadoras e cantores, principalmente os que atuam no segmento cristão, as rádios comunitárias evangélicas desenvolvem um papel preponderante para a divulgação. Mesmo que o alcance seja mínimo em comparação com as oficiais, elas realizam o que pode ser chamado de milagre da multiplicação – muitas vezes, a soma de seus ouvintes é de causar inveja a emissoras de grande porte. “É uma questão de identificação”, diz Luiz de Carvalho Neto, diretor artístico da gravadora Bompastor, de São Paulo. “Apesar do alcance limitado, elas têm um público muito fiel nas comunidades onde estão inseridas”, ressalta. Além disso, por serem entidades sem fins lucrativos, não costumam exigir o famigerado “jabá”. “O valor cobrado pelas emissoras oficiais inviabiliza a projeção de novos artistas, e acaba com a democracia que deveria existir nos meios de comunicação como forma de propagação da cultura”, conclui Neto.

Fonte: Revista Eclésia - Edição 115

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José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 11/05/2006
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T154203
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