ACADÊMICOS DESCOBREM SARAMAGO

Para o aluno de Letras, que se aprofunda no universo da literatura portuguesa, nomes como Gil Vicente, Camões e Pe.Vieira não são surpresa. Gratificante, entretanto, é o interesse com que abordam obras menos conhecidas, como as Crônicas de Fernão Lopes, as Lettres Portugaises, de Sóror Mariana Alcoforado e os polêmicos romances de tese de Eça de Queirós. Perplexidade é o que acontece diante do discurso e identidade labirínticos de Fernando Pessoa e seus múltiplos seres de linguagem.

Mas pode dizer-se que o grande catalisador de atenções é José Saramago, Nobel da Literatura em 1998. Inexplicavelmente não listado no programa de estudos da maioria das faculdades, Saramago está sendo, justificadamente, exigido no Provão e incluído nos livros didáticos.

Ultrapassadas as dificuldades superficiais referentes à pontuação original e ao desconhecimento da História de Portugal, o aluno embarca com prazer no discurso por vezes irônico, por vezes irreverente e sempre desmitificador de ideologias, capaz de lançar dúvidas sobre “verdades” sedimentadas.

Com extraordinária competência, o autor consegue este efeito, trivializando as ações das figuras históricas. O Memorial do convento e O Evangelho segundo Jesus Cristo são exemplos da ficção saramaguiana em diálogo com a versão “oficial” da História e com toda a tradição ocidental cristã.

A grande lição de Saramago é sobre linguagem: todo o texto histórico e mesmo os Evangelhos Sagrados, uma vez escritos, são (tecnicamente) “textos” sujeitos à própria

fatalidade da linguagem. Ao ser lido, o texto passa a pertencer ao leitor e se desabsolutiza diante das diversas leituras possíveis e dessacralizantes. Em sua frase ”Quod scripsi, scripsi" (o que escrevi escrevi), Pilatos exibe, a um tempo, autoridade, prepotência e desconhecimento do que é a escritura: tudo o que se escreve admite um texto apócrifo, paródico ou herético no ato da leitura. É sobre esta operação de intertextualidade, de recorte e colagem que caracteriza o processo de leitura/escritura que discorre com inegável maestria José Saramago.

Anabela Bingre de Négrier
Enviado por Anabela Bingre de Négrier em 27/05/2006
Código do texto: T164013