Gestão de Peças do Patrimônio Cultural
“Só podemos entender a nossa cultura, valorizar nosso patrimônio, na medida que formos capazes de olhar cada vez mais, para dentro de nosso país, para nosso povo”
Roque de Barros Laraia
Considerações Iniciais
È extremamente interessante à simulação de gestor de patrimônio, a simples idéia de gerir essa coisa quase indefinível e confusa que é o patrimônio cultural me remete ao papel de guardião da cultura, detentor dos saberes, erudito, ou ainda detentor do poder que o passado e as referências sobre a identidade fornece. È muito fácil cair nessa armadilha, a visão dos gestores é de “dono e senhor” do patrimônio, ainda que essa característica negue a própria definição do que vem a ser um patrimônio cultural, uma vez que a propriedade do mesmo é mantida, mas a partir de seu tombamento o direito de dispor e modificar esse bem passa a ser restrito na forma que define o decreto-lei número 25 de 30 de novembro de 1937.
Decreto esse que passa a reger de forma clara e geral todos os bens considerados patrimônios culturais, o Brasil tem instituído e consagrada desde então, o final da década de trinta, a figura jurídica do tombamento Deve-se ressaltar que curiosamente o “grupo modernista” do patrimônio não seguiu inicialmente o modelo francês preservacionista, que consiste na classificação e no registro dos bens históricos e arquiteturais. O escritor e musicólogo Mário de Andrade – que compôs o Anteprojeto original do SPAN(SPAN – Serviço do Patrimônio Artístico Nacional – Sigla original proposta por Mário de Andrade, que ficou mais conhecido como SPHAN, quando foi acrescentada a categoria Histórico – Este órgão já mudou de nome algumas vezes, hoje tem a nomenclatura oficial IPHAN; de serviço passou a instituto), optou por seguir o modelo português, com a inscrição dos bens e valores culturais em Livros do Tombo.
Deste modo, já são mais de sessenta anos de pesquisas, catalogações, inscrições e tombamentos, patrocinados pelo IPHAN – que passou a incorporar o CNRC (Centro Nacional de Referência Cultural – que existiu de forma independente – sendo incorporado ao IPHAN, junto com o PCH (Programa de Reconstrução das Cidades Históricas). e a Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM).
Somente 60 anos após o Decreto 25 é que o Ministério da Cultura, em 1998, instituiu o GTPI (Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial), com o intuito de promover discussões entorno da idéia da proteção de “bens culturais intangíveis”, que em nosso País é designado mais freqüentemente como patrimônios culturais imateriais. Depois de vários seminários e reuniões chegou-se a um documento que propõe uma minuta de decreto presidencial, no qual se define o novo instituto jurídico denominado registro, que já havia sido previsto na Constituição Federal de 1988. Basicamente o novo decreto, que entrou em vigor em agosto de 2000, em cria o Registro de bens culturais de natureza imaterial, como instrumento de acautelamento, e institui o “Programa Nacional de Identificação e Referenciamento de Bens Culturais de Natureza Imaterial”. Mais especificamente, “o Registro consiste na inscrição de bens culturais de natureza imaterial em um, ou mais de um, dos seguintes Livros de Registro”:
I – Livro de Registro dos Saberes e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades.
II - Livro de Registro das Festas, celebrações e folguedos que marcam ritualmente a vivência do trabalho, da religiosidade e do entretenimento.
III – Livro de Registro das Linguagens verbais, musicais, iconográficas e performáticas.
IV - Livro dos Lugares (Espaços), destinado à inscrição de espaços comunitários, como mercados, feiras praças e santuários, onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas (MinC:2002).
A questão que coloco é a seguinte: será que a criação deste novo instituto do registro e destes Livros, referida acima, avançou na superação das principais dificuldades contidas no decreto-lei que instituiu o tombamento no Brasil?
Como se sabe, este instrumento legal em muitos aspectos foi pioneiro e tem conquistas importantes, porém transformações atuais no campo patrimonial parecem exigir novas atitudes na área preservacionista. Todavia, chamo a atenção para as novas estratégias de preservação que estão emergindo dos chamados novos patrimônios – especialmente no crescente interesse pelos patrimônios ditos culturais. Assim, será que o novo recurso institucional proposto aponta para novas práticas de promoção da questão patrimonial no País?
De acordo com o que estamos acostumados a ver fica fácil constatar que essa nova política de registros dos patrimônios imateriais peca, assim como a política dos patrimônios edificados e materiais, por ser excessivamente burocrática e cartorial, assim nada muda em relação à gestão deste patrimônio, o simples registro num livro não deve garantir mais que a documentação daquilo que já existiu.
O registro dos bens é considerado condição sine qua non para a gestão patrimonial, assim um bem é declarado patrimônio, registrado no livro do tombo e passa a ser da responsabilidade do gestor, no caso da pessoa que será responsável por sua preservação, como se o governo passasse a responsabilidade, apesar de que o fato do bem estar inscrito no livro acarreta uma série de obrigações e deveres dos gestores daquele bem, mas essa é a política vigente, não nos cabe seu questionamento nesse trabalho, mas sim o estabelecimento de uma forma de gestão do patrimônio que se encontra sob nossa responsabilidade.
Gerir ou Guardar, eis a questão...
Pode-se pensar de maneira muito simplista e dizer que, a gestão dos bens tombados sob minha responsabilidade, se dará simplesmente guardando-os, assim fica muito fácil de gerir o patrimônio cultural, as peças que estiverem sob minha gestão serão guardadas adequadamente em ambiente climatizado e com vigia armada durante as 24 horas do dia, garantindo assim sua preservação para sempre, desta forma eu com tranqüilidade estarei garantindo a integridade física das peças do patrimônio, acabo de resolver assim a questão que tira o sono dos gestores do patrimônio, basta construirmos cofres fortes com ambientação adequada e vigilância para gerir o patrimônio cultural material móvel.
Mas qual o sentido em tombar algo e simplesmente guarda-lo? Se for para garantir somente a integridade física das peças e que as mesmas não seja roubadas, não é tão difícil como dizem gerir o patrimônio cultural, o problema que uma peça que é um patrimônio cultural de um determinado povo, não é somente a matéria ali representada, mas principalmente ela carrega um significado para esse povo, assim uma imagem sacra por exemplo pode ser milagrosa no Brasil, e não ter nenhum valor artístico, mas será com certeza um patrimônio cultural para o povo que a considera como milagreira, como tombar essa peça e guarda-la num cofre, longe de seus devotos, e impossibilitando o contato entre a imagem e seus fiéis, é esse tipo de problema que permeia a gestão do patrimônio cultural, não se entende o que é patrimônio sem entender o povo que assim o considera, não se pode prescindir da participação da comunidade na gestão do patrimônio cultural, sob pena de fazer com que esse patrimônio perca sua importância.
Assim eu como gestor de peças do patrimônio cultural procurarei estudar e entender qual o valor dessas peças como patrimônio, elas são consideradas patrimônio por quem? E para quem? É preciso entender essas questões para depois gerir esse patrimônio adequadamente. Se a comunidade considera as peças como parte importante de sua cultura material essas peças são partes do patrimônio culturais dessa comunidade, aí temos que levantar num estudo com base antropológica, porque essas peças são importantes e como se inserem no modo de viver desta comunidade.
O correto entendimento do patrimônio, é a forma mais segura de geri-los adequadamente, a partir de ações que visem ao mesmo tempo garantir a integridade física das peças e sem jamais retira-las de seu contexto, sempre envolvendo a comunidade na gestão dessas peças, deixando que a própria comunidade possa gerir seu patrimônio, é claro que essa “auto-gestão” do patrimônio deve ser controlada e administrada pelo gestor oficial, inclusive para a resolução de problemas de ordem prática que tendem a aparecer, interesses conflitantes existem em toda e qualquer comunidade, não se pode simplesmente deixar por conta da comunidade, mas antes disso entender os conflitos e trabalhar no sentido de contorna-los.
Ações de cunho prático são inúmeras e poderia cita-las aos montes, porém para cada tipo de peça haverá ações específicas, assim prefiro ficar no campo geral, estabelecendo como regra geral que gestão de patrimônio cultural é assunto para pessoas que possam compreende-lo em toda a sua complexidade, sem jamais dispensar a ajuda da comunidade, inclusive com seus conflitos e contradições, mas a preservação do patrimônio cultural só terá sentido se a comunidade que assim o considera, tiver acesso a ele e puder dele usufruir.
Uma forma de gestão do patrimônio poderia ser a utilização turística desse patrimônio, com todo o perigo que representa a abertura de visitação para o patrimônio cultural, mas não se pode negar que ao agregar valor econômico ao patrimônio cultural e com certeza uma forma de garantir sua preservação, ainda que no atual modelo de exploração turística é inadequado, porém é lícita a afirmação que uma mudança de postura por parte dos planejadores turísticos poderia garantir uma gestão preservacionista do patrimônio, porém é importante ressaltar que o turismo deve ser uma atividade meio da gestão patrimonial, de forma a garantir à comunidade a preservação do patrimônio, a atividade fim da gestão patrimonial deve ser sempre a garantia à população local de seu patrimônio cultural.
Considerações Finais
Para a conclusão deste trabalho pode se propor que o turismo pode e deve ser utilizado como ferramenta de gestão do patrimônio material e imaterial, mas deve ser levado em consideração que o atual modelo de exploração turística não leva em consideração a cultura dos núcleos receptores, assim a comunidade que recebe os turistas vê suas tradições serem transformadas em função de receber bem aos turistas, não se trata, como já foi dito, de criarmos uma redoma em torno das comunidades receptoras, mas antes de tudo da conscientização desta comunidade da importância de sua cultura, e aí então deixar que o contato com os turistas faça o trabalho de incrementar a cultura local.
A utilização de viagens para complementação da educação é a própria origem da atividade turística. Em meados do séc. XIX quando o pastor protestante Thomas Cook inaugurou sua primeira agência de turismo na Inglaterra, sendo seus clientes filhos de famílias abastadas que saíam a percorrer o mundo em busca de complementar sua educação, assim eles estavam em busca de contato com outra realidade cultural no sentido de que esse contato pudesse enriquece-los culturalmente. Portanto a atividade turística com fins lucrativos nasce sob égide da difusão cultural.
Assim a utilização da atividade turística como forma de gerir o patrimônio é possível, mas tão importante quanto investir em infra-estrutura para receber os turistas é preparar a comunidade receptora para ter consciência de seu patrimônio cultural, como já visto a definição de patrimônio passa pela decisão da própria comunidade no que deve ser preservado.
A função do verdadeiro gestor de patrimônio cultural deve ser o de indicar à comunidade o que pode ser considerado como patrimônio, documentando adequadamente e preparar essa comunidade para o contato com outras culturas. Essa preparação deve ser no sentido de direcionar o ímpeto das mudanças, procurando equacionar as tradições antigas com as novas tradições que certamente surgem nos contatos com os turistas.