AVENIDA SÃO JOÃO - UM MUNDO POVOADO DE SENTIDOS

O mundo da São João é povoado de sentidos e valores. Simples direções do espaço, esquerda, direita, alto, baixo, são investidas de significações: caímos, com a população de rua debaixo do viaduto, sentimos o peso da hierarquia que habita os últimos andares. Apesar de tudo, temos a vida diante de nós e, a um passo atrás, um passado de risos e lágrimas. Ali, perde-se o norte...

Mas, em cada prédio, nas pessoas que ali ficam ou por ali passam, está a linguagem que povoa nosso mundo paulistano. A Paulista pode ser a mais paulista das avenidas, mas a São João é a mais paulistana. Senhora de seu espaço, distribui os códigos de sentido ao universo que é seu e que, generosa, deixa perceber. Impõe seu idioleto ao nosso campo semântico, e percebemos o mundo pelo seu crivo. Um crivo, ora arbitrário e convencional, ora espectro luminoso que brinca com o vermelho bordel.

Contraditoriamente, porém, o simples fato de caminhar no seu espaço urbano nos faz perder a consciência dessa pregnância de sentido: sinalética, mensagens publicitárias, faixas. Ali, a minha cidade – que é São Paulo e tem sobrenome de Piratininga, que jamais foi Sampa e nunca teve palmeiras – se deixa ler, como um livro. Como neste livro.

J.D. Morbidelli consegue captar a simbólica São João, denunciando, em texto e imagem, como a cultura “moraliza” o espaço. Foi mais além. Folheando o livro, podemos ver que nosso espaço pessoal, a concepção que temos da avenida se faz em redor de um conjunto de recuperações, de uma bula, de um mapa do tesouro individual, que organiza o espaço e faz com que o “centro” da cidade dependa – imerso nas páginas do livro – da apreciação subjetiva de cada um de nós, em função do tesouro de nossas próprias memórias. Se “todos os lugares nos levam a Roma”, centro do poder temporal ou espiritual, a São João deste livro nos leva à São Paulo, investida de significações simbólicas. Para mim, será sempre a direção do sonho, dos amanhãs que cantam pelas rondas passadas. Louco eldorado espanhol dos nordestinos de hoje e de meus pais, de ontem.

O livro rouba objetos do espaço da avenida. Estampadas nas páginas, tais imagens estão investidas de outras significações e hão de variar de um leitor a outro. Faremos a diferença, entre o objeto real e o sonhado, que será percebido em função de seu valor fantasmático.

A psicanálise mostra que nossa educação carregou de afetos as imagens, os objetos que, na vida inconsciente (nos sonhos, em particular), exprimem desejos ou frustrações. De fato, é outro mérito desta obra, pois nos aproxima da relação homem–espaço urbano. E, se somos o que somos, é nosso ser inteiro que se envolve nas páginas do livro. Se estar no mundo é a dimensão fundamental de nossa condição humana, estar na Avenida São João do livro é vivenciar o inconsciente coletivo e individual.

A obra não nos permite perceber nada isolado. Força-nos a antecipar com o que vimos o que ainda não vemos, percorrendo, como fio condutor, a continuidade (ou seria a perenidade?) da São João. Isto quer dizer que nova visão virá, na página seguinte, mas não será totalmente diferente do já visto, porque um mesmo mundo – o da história da avenida – a despeito de ter tido parte de seu céu coberto de asfalto, é o sol universal de nossa crença no ser.

Assim, o livro mostra como a avenida aproxima percepção e alucinação. Não há distância entre o eu e o objeto. Ficamos aderidos à percepção da obra. É uma adesão à crença, não ao conhecimento. É uma profissão de fé perceptiva.

Cada imagem é provida de um horizonte externo, recuperado no texto. E o texto une as percepções atuais ou possíveis que, por mais assustadoras e reveladoras da decadência, não rompem o senso estético, ou a vida que transluz.

Ao fim dessa variação harmônica, cabe ao leitor antecipar a resolução de um acordo, restabelecendo, com a força da imagem ou do texto, a continuidade da história, a continuidade do mundo da São João, a nossa crença na continuidade do ser.

Mesmo tomada pela tempestade de ações destruidoras, nós não ficamos, para sempre, sob as águas da avenida. Mesmo se os espaços são destruídos, por um momento, nem alto, nem baixo, nem esquerda, nem direita... Nossos corpos se tornam os únicos resgates, sem que nada mais venha servir de referência.

Temos a obra nas mãos, as imagens na memória e um horizonte interno. E basta para que provemos que ver não é ver, para o homem. Ver é, certamente, sentir e estruturar, é nomear, reconhecer e mais que isso, contemplar.

O que está em jogo nesta obra é a nossa condição de homens. Somos os únicos seres para quem a relação com o mundo não está totalmente constituída a partir do nascimento. Nós devemos aprender o mundo, fazê-lo existir por nós, dar-lhe sentido e valor.

Vamos lá, mãos, olhos e sentimentos à obra!

Afinal, a Avenida São João espera que cada um cumpra o seu dever para com ela.

OBS: Prefácio do livro "Avenida São João - Apogeu e Decadência", escrito por Angelo Masson. Se você gostou e quiser conhecer o livro, favor entrar em contato por e-mail.

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JDM

José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 14/07/2006
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T194042
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