Um brevíssimo comentário sobre a historiografia e a verdade

A verdade é relativa, dependente de intenções e pontos de vistas, muitas vezes manipuláveis, o que influencia diretamente no conhecimento histórico. É impossível um historiador se isentar totalmente de suas opiniões e vida para escrever sobre os fatos. Ele pode tentar evitar.

O desejo dos positivistas de criarem um historiador isento de emoções e apenas com interesses investigativos é um sonho tecnocrático que só poderia ser alcançado com a criação de um indivíduo subitamente desprovido de sentimentos e história que se colocasse apenas a narrar e narrar. Talvez narrar nem fosse o melhor termo, mas acumular, reunir e transcrever dados. Ainda sim, esse ser cairia em um outro erro, o de se esquecer de que o passado que ele pesquisa vem de fontes que também foram produzidas por seres humanos, isto é, pessoas providas de intenção que narraram e interpretaram segundo o que seus olhos, cultura, crença e intenções lhes permitiam enxergar ou ouvir no momento. Nem as fontes seriam isentas de intenções, como poderia então um historiador produzir tal isenção.

Seria mais sincero dizer que o historiador tem sim sua intenção ao descrever a história, mas não apenas como uma luta de classes como dita Marx. Ainda há a possibilidade de diminuir e controlar ao menos parcialmente as intenções humanas, afinal, o ser humano é razão e emoção. Mesmo que nunca possa se desprover de seus sentimentos, o historiador ainda pode ao menos guiá-los, tentar controlar em parte. É claro que existe uma consciência que permite ao homem ser sincero consigo mesmo quando ele escreve. Ele sabe muito bem que ali coloca sua visão e pode também julgar até que ponto não está usando as fontes e o trabalho para manipular e utilizar uma suposta verdade que agrade o seu ponto de vista. Existe uma grande diferença entre um historiador que quer escrever e narrar a história e entre aquele que quer agradar a si mesmo ou a quem se destina a história.

A sinceridade ao lidar com as fontes permite ao leitor ter contato com outras culturas e julgar a si mesmo, como é seu dever intelectual ou ainda, como um mero zangão (talvez drone, em inglês seja melhor), se deixar levar pelo escrito e se deixar manipular. Um exemplo disso é a história das cruzadas. Existem no mercado diversos livros sobre esses eventos. Entre eles, estão obras de autores europeus, baseadas muitas vezes em documentos latinos, mas também já apareceram livros como As Cruzadas vistas pelos árabes e as Crônicas hebraicas que deixam muito claro que darão as versões de muçulmanos e judeus sobre os acontecimentos. O leitor pode se saciar com todo o conjunto e escrever seu próprio conceito de cruzada na mente. Ou, como quiser, pode tomar uma das obras e julgar como a sua verdade, caso esteja tão enraizado e cegado pela própria cultura que não consiga um contato empático com o que viveram os outros.

Não há mal em julgar que a história não consiga sempre revelar uma verdade universal e integral. Nem a ciência o consegue, mesmo que pretende usar esses argumentos. O que dizer, por exemplo, do processo de taxonomia que sempre foi dito como rígido e cheio de regras que permitiam a divisão exata dos animais em reinos, famílias, genros e espécies. Bastou o advento da genética e da biologia molecular para deslocar dezenas de espécies de uma família ou gênero para outro. Até os seres humanos se confundiram ao saber do próprio genoma, com eventos como a eugenia ido e vindo conforme diferentes interpretações de geneticistas (sempre cheia de intenções, seja daqueles que querem provar seus preconceitos ou daqueles que querem exagerar no politicamente correto).

As palavras de Marrou são sábias quando ele diz que o grau de verdade da história é maior quando o historiador conhece seus limites para conhecer o outro e sabe que não é Deus. A história é sim um encontro com a vida. Ela parte do indivíduo e do meio que o cerca. O historiador pode conviver consigo mesmo e diminuir suas influências, mas ao lidar com o passado, ele não consegue ainda se livrar do passado e presente que carrega dentro de si. É um fato inerente da natureza humana e que cabe ao historiador entender e aceitar, para conviver com sua profissão sem sofrer com os ataques quanto à verdade que escreve. O trabalho onde qualquer ser humano tem que estar de acordo com sua consciência e a leitura desse ainda sofrerá a interpretação da consciência de quem lê.