JESUS E A QUEBRA DO ANDROCENTRISMO

Do aprendizado com Jesus, as mulheres começaram a construir novas regras de comportamento na busca do reconhecimento de seu papel igualitário no contexto social

Assistimos em nossos dias a uma ascensão crescente de mulheres em todas as áreas do mercado de trabalho, e até mesmo no comando de nações. Atualmente, encontramos 17 líderes globais femininos, governando 16 países. A partir de janeiro de 2011, o nome da presidente do Brasil, Dilma Rousseff, figurará nas estatísticas que demonstram o quanto a mulher avançou na conquista de seus direitos e ideais.

Tal liberdade inexistia no tempo de Jesus. As mulheres viviam sob total repressão, e todas as civilizações adotavam o androcentrismo disseminado pelas escolas filosóficas platônica, aristotélica, estoica e pitagórica, cujos pensamentos privilegiavam os homens. Aristóteles imaginava que o corpo feminino era dotado de um cérebro menor e, portanto, impedido de desenvolver sua capacidade racional e intelectual. Pitágoras ensinava que um princípio bom gerou a ordem, a luz e o homem, enquanto que um princípio mau gerou o caos, as trevas e a mulher. As leis atenienses ordenavam que as mulheres deveriam permanecer em silêncio nos ajuntamentos solenes e não podiam participar das assembleias dos cidadãos. As mulheres judias igualmente viviam em silêncio e em situação de grande privação e isolamento social. De acordo com Champlin, não era permitido à mulher alguma frequentar escolas de ensinamentos da lei, porque os rabinos afirmavam: “É preferível queimar a lei do que ensiná-la a uma mulher”.

Entretanto, as narrativas do Novo Testamento revelam que Jesus quebrou o paradigma do androcentrismo e da proibição feminina de anunciar a Torá, quando acolheu mulheres no seu próprio grupo de discípulos, para o seguirem, servirem e proclamarem as mensagens anunciadas, o que, subentende-se, incluía também as referências messiânicas dos Escritos Sagrados dos judeus.

A presença de Maria Madalena e de outras mulheres no movimento de Jesus é incontestável sob o ponto de vista dos evangelhos canônicos, tanto que elas são mencionadas desde o começo de seu ministério na Galiléia como sendo discípulas em toda a extensão que esse termo requer – seguiam, serviam e anunciavam aos outros o que viam e ouviam da parte de Jesus. E isso não só ocorria com Maria Madalena, mas com as muitas mulheres que são mencionadas tanto nos evangelhos como nas epístolas paulinas. Com Jesus elas viveram a experiência de serem curadas, de se tornarem seres humanos saudáveis e participantes, vivenciando uma experiência de plenitude de vida até então reprimida pelo patriarcalismo filosófico e judaico. Elas permaneceram fiéis a Jesus, mesmo na hora em que ele estava entregue à morte por exigência das autoridades judaicas e sob seus olhares atentos. Apesar disso, elas não temeram, não fugiram; pelo contrário, puseram-se como testemunhas oculares de sua morte e sepultamento. Foram as primeiras a irem ao túmulo, mesmo sabendo que corriam o risco de serem mortas.

Onde encontraram tanta coragem se viviam sob um regime de total repressão? Encontramos explicação para essa questão no entendimento de que Maria Madalena e as demais mulheres que seguiram Jesus absorveram e se apropriaram da ética por ele ensinada, que não faz acepção de pessoas, não estabelece diferença de gênero, nem de origem, nem de condição social, como disse Paulo: “Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos sois um em Cristo Jesus” (Gl 3.28). Entenderam assim que eram livres para decidir por si mesmas, e agir segundo suas decisões, com a coragem de assumir as implicações de seus atos, quer fossem de recompensa ou punição.

Do aprendizado com Jesus, as mulheres começaram a construir novas regras de comportamento na busca do reconhecimento de seu papel igualitário no contexto social. Jesus abriu caminho para que elas também assumissem posições de liderança. Na fase difícil de formação da Igreja primitiva, as mulheres se faziam presentes e atuantes nas comunidades como diaconisas, líderes, profetisas, num período em que o cristianismo era perseguido, uma religião proibida pelo Estado. As reuniões aconteciam em lugares reservados, nos interiores das casas ou em catacumbas. As mulheres cediam seus lares, eram as patronas, fundadoras de comunidades. Paulo as apresenta como lutadoras pela divulgação do Evangelho: Evódia e Sintique (Fl 4.2-3); Febe, Trifena, Trifosa e Perside (Rm 16.1-2, 12); todas trabalharam arduamente na formação do cristianismo, cedendo suas casas para servirem de templo, hospedando os discípulos, proclamando a palavra. Mas, apesar de mencioná-las e reconhecer que Cristo instituiu a igualdade de gênero, Paulo omite o nome de Maria Madalena e das outras mulheres, no seu relato sobre as testemunhas da ressurreição de Jesus (1Co 15.5-8). Sem demérito do precioso e basilar trabalho que ele realizou em prol do cristianismo, tal omissão sugere uma atitude androcêntrica por parte do apóstolo, uma vez que o fato foi citado nos quatro evangelhos, tendo João retratado com exclusividade o encontro e o diálogo ocorrido entre Maria Madalena e Jesus ressurreto.

Uma leitura cuidadosa das epístolas paulinas põe em evidência que o apóstolo preservou o androcentrismo filosófico e judaico, que supostamente adquirira com os fariseus e com as literaturas pagãs dos cultos mitológicos praticados em Tarso, sua cidade natal, prováveis frutos de sua dupla cidadania farisaica e romana. Tais evidências estão presentes nos seus escritos sobre modelos éticos e morais impostos aos cristãos, onde há literal esclarecimento se os mesmos procedem de revelação de Deus; de imposição da lei; ou do seu entendimento pessoal. O exemplo disto está nos seus ensinamentos sobre o casamento, onde o apóstolo emprega expressões como: “digo, “digo eu, não o Senhor”, “ordeno”, “dou o meu parecer”, “segundo o meu parecer” (1 Co 7.6-40). E ainda em 1Co 14.34, onde há clara menção de que a doutrina que impunha silêncio às mulheres procedia de um preceito da lei: “As mulheres estejam caladas nas igrejas; porque lhes não é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei”. Entende Champlin, com essas declarações, que Paulo estava simplesmente transferindo para a Igreja cristã, algumas ideias que trouxe do judaísmo, no que diz respeito à mulher. Nesse pressuposto, é possível compreender que dificilmente o apóstolo iria mencionar Maria Madalena como testemunha da ressurreição de Jesus, mesmo sabendo que foi ela quem anunciou aos discípulos o fenômeno da ressurreição. A cultura androcêntrica que trazia dentro de si, resultante dos muitos anos a serviço do judaísmo o impediam de declarar uma mulher como testemunha do fenômeno que constituiu a razão maior de toda a sua esperança (1Co 15.19,20). É até imaginável que tenha sido o silêncio paulino sobre o testemunho de Maria Madalena que levou João a registrar no quarto Evangelho, décadas depois de Paulo, todo o detalhamento de como se deu o encontro entre ela e Jesus após a ressurreição (Jo 20.11-18). Entretanto, em 323 d.C. Constantino concedeu liberdade de culto à Igreja, e, à medida que esta foi se estatizando, o discurso oficial com relação às mulheres foi ficando cada vez mais excludente e misógino. O androcentrismo paulino foi adotado pelo clero ortodoxo e sedimentado pelo papa Gregório Magno (590–604) que estigmatizou Maria Madalena como prostituta, confundindo-a com a mulher pecadora mencionada no Evangelho de Lucas. Essa concepção discriminatória da mulher, assegurada pelo clero, foi prevalecente por cerca de 1500 anos, permitindo a manutenção dos homens no poder, legitimando a submissão feminina e sufocando qualquer tentativa de subversão da ordem masculina estabelecida. Mas, a partir de 1945, as descobertas arqueológicas em Nag Hamaddi, no Egito, de papiros contendo cópias de textos gnósticos, incluindo o Evangelho de Maria e o Evangelho de Filipe, inauguraram um novo período de pesquisas sobre Maria Madalena e abriram as portas para o surgimento de movimentos feministas e de emancipação da mulher. Leis foram criadas em benefício do chamado “sexo frágil”, como por exemplo, o direito ao voto. As escolas e universidades abriram as portas também para elas, e suas vozes passaram a ser ouvidas e seus conselhos seguidos. Igrejas evangélicas começaram a ungi-las pastoras e auxiliares de trabalho. E, finalmente no ocidente, em nossos dias, já existe o reconhecimento consagrado – embora ainda embrionário em alguns aspectos – da igualdade de gêneros; e, em alguns casos, da vitória da mulher sobre o domínio dos homens, como estamos vendo pela primeira vez em nosso país: a eleição de uma mulher presidente do Brasil.

Fonte: Maria de Fátima M. de Carvalho / Revista Eclésia - Edição 146

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José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 19/02/2011
Reeditado em 12/03/2012
Código do texto: T2802002
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