Lullabye

Deveríamos todos viver em clima de constante celebração da vida, venha a consciência dela na forma de nascimento ou de morte. Afinal, passamos a vida a pensar (não há quem seja capaz de bloquear o fluxo do próprio pensamento); mas sobre aquilo que importa só somos capazes de raciocinar claramente à luz dos grandes eventos da vida.

Vocês já repararam como a gente fica “esperto” quando morre alguém próximo, especialmente de maneira inesperada? De repente fica tudo muito claro: as oportunidades perdidas, as palavras mal-ditas, os bons e maus momentos revestidos de significado e saudade. Tomamos decisões importantíssimas: trabalhar menos (ou pelo menos deixar um pouco de lado a luta pela vida para aproveitar a família e os amigos), dedicarmos-nos mais aos próximos, viver cada dia como se fosse o último e coisa e tal.

Da mesma forma e ainda com mais esperança quando recebemos a visita da cegonha e olhamos para aquele milagre pequenino que ainda ontem transformara a barriguinha amada em uma espécie de melanciazinha. Transbordamos de amor, fazemos planos, ficamos apaixonados pela vida colorida e ensolarada que se estende diante de nós.

Depois, um dia, infelizmente, voltamos ao “normal”: ensimesmados com nossos problemas, a cabeça voltada e presa ao contemplar de nossos próprios umbigos – e aqueles planos todos, as melhores intenções, vão ficando para trás, soterrados... por nós mesmos.

“Acho que no mundo de hoje as coisas não estão sendo bem aproveitadas”, disse-me alguém que deu o diagnóstico – mas não a terapia – há muito tempo atrás. Acho que é a mais pura e dolorosa verdade. Não era para ser assim.

Fomos feitos para o sol que entra no quarto pela janela, de manhã; para longos desjejuns acompanhados da pessoa amada; para a calma e não para a pressa destes dias insanos em que tudo – especialmente a falta de dinheiro – nos impele ao frenetismo de ações mecânicas e descompassadas. Fomos feitos para a culinária vagarosa (verdadeira terapia ocupacional), e para refeições bem balanceadas, à francesa, de preferência temperadas com um bom vinho tinto. Fomos feitos para os sorrisos, para a gentileza, para ouvir mais que falar, namorar mais que brigar, conciliar interesses contrários e evitar reações adversas. Fomos feitos para o amor mais que para o sexo, puro e simples e desconhecido. Fomos feitos para as longas noites de sono, madrugadas acordado, nasceres e pores-do-sol.

Carregamos dentro de nós este relógio, hormonal e biológico, que serve à alma com a competência adquirida através dos milhões de anos de tentativa e erro de uma natureza que é “divina” mesmo aos olhos do ateu mais ferrenho. Nascemos, crescemos, envelhecemos e é tudo “da lei”, não obstante as tentativas vãs de protestar, modificar, aperfeiçoar. Hoje estou aqui, varando noites ao lado de meu filho muito amado; amanhã será ele a contemplar a estátua de cera em que me transformarei quando a centelha da vida me deixar.

Conseguirei convencê-lo a agir melhor que eu, a aproveitar cada segundo, a jamais buscar uma felicidade abstrata que já vem com cada um de nós, escondida nos sentimentos mais piegas, nas pequenas grandes coisas do dia-a-dia, em cada um dos mirantes que nos permitem ver a vida do alto e nós mesmos com suficiente distanciamento crítico? Não sei. Mas não me preocupo. Subo a escada e miro o quartinho que eu mesmo pintei, a menina que escolhi para ser mãe dele e o bebê que me fita através dos cristalinos ainda imaturos, mas já é capaz de sorrir. Sei que estou certo em quase tudo que falei, e quase sempre errado naquilo que faço, mas espero confiante que a paixão não esmoreça, que os planos e as decisões tomados agora, em que me encontro inebriado pela vida que observo em zelosa missão, sejam perenes.

E enxoto da cabeça todo e qualquer receio, todo e qualquer problema, tudo que não seja simples, bonito e bom. Sim, é isso que vou tentar fazer.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 09/11/2006
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