Deus seja louvado

"O que o dinheiro faz por nós não é nada em comparação com o que nós fazemos por ele.”

_Millôr Fernandes.

Mensagem em todas as cédulas de Real

É preciso falar em Deus no dinheiro, tem sentido fazer constar o nome de Deus no dinheiro de uma República que se diz laica, como o Brasil?

Se o Estado brasileiro é laico por lei, como é possível juridicamente que essa inscrição tenha sido aprovada para a moeda nacional? Imagine se isso fosse escrito em tudo o que chega a nossas mãos, desde embalagens de arroz, feijão, açúcar, absorventes a preservativos...

A iniciativa de colocá-lo no dinheiro brasileiro é relativamente recente. Foi do então presidente José Sarney (1985-1990), conhecido pelo seu espírito pio, por sua quase santidade, como sabemos.

De nomes que incluíam, entre outros, “cristal”, “carajá”, “del rey”, “real”, “brasão” e “nacional”. O Sarney preferiu “cruzado”, porque lembrou que era o nome de uma moeda que circulou no Império, entre 1834 e 1848.

Mais tarde, Sarney, por iniciativa isolada, mandou o BC incluir o lema “Deus seja louvado” nas novas cédulas de cruzado, mas não houve grande reação, exceto uma certa galhofa por se tratar de visível imitação do “In God We Trust” (em Deus confiamos) dos americanos (outra República laica, a mais antiga e a principal delas, que coloca Deus no dinheiro e, entre outras impropriedades, a Bíblia na posse dos novos presidentes). Até a época do cruzado não se utilizava esta inscrição e passou a ser reutilizada com o (re)surgimento do real.

Mas no entendimento de alguns, o fato das notas de dinheiro trazerem a inscrição “Deus seja louvado” não significa nenhuma quebra dos princípios do estado laico.

Outros, como Ricardo Setti, colunista da Revista Veja, acha que Deus deve ser reverenciado por quem crê, nos locais apropriados - e deixado em paz na coisa pública, como:

A CONSTITUINTE, “SOB A PROTEÇÃO DE DEUS” - O Altíssimo, no entanto, voltaria a frequentar as discussões políticas durante a Constituinte (1987-1988), inclusive ao final dos trabalhos, quando se discutiu intensamente o preâmbulo da Carta e se ele deveria ou não mencionar que a promulgação – que ocorreria a 5 de outubro de 1988 – se daria “sob a proteção de Deus”. O Todo-Poderoso acabou permanecendo no texto. Mesmo na Carta Magna que consagrava, como consagra, um estado laico, não-religioso (artigo 19, inciso I). Mas não apenas ali. Lobbies de diferentes religiões conseguiram fazer aprovar também um parágrafo ao artigo 210, que trata do ensino fundamental, instituindo o ensino religioso “de matrícula facultativa” nas escolas públicas desse grau. Criou-se então mais essa contradição com o nosso suposto estado laico.

A GROTESCA TENTATIVA DE ROSINHA - Esse artigo 210 acabou sendo a raiz da discussão que se travou anos atrás em torno da grotesca determinação do governo da então governadora Rosinha Matheus (naquela época do PMDB), no Rio, de punir com afastamento ou demissão o professor de religião que, dizia a proposta, “perder a fé e tornar-se agnóstico ou ateu”. (Entre parênteses, uma pergunta: como é que o governo iria provar que o sujeito perdera a fé?). A Constituição e as leis do país vedam qualquer forma de proselitismo religioso na escola pública. O ensino de religião previsto na Carta e regulamentado por lei deve, obviamente, ter caráter informativo, histórico ou antropológico – e não confessional, como queria a governadora evangélica do Rio.

CRUCIFIXO NO SUPREMO, FERIADOS RELIGIOSOS - Esse episódio do Rio felizmente passou, como felizmente passaram os Garotinhos no mando do terceiro maior estado da Federação. Mas não era um episódio menor. Tocava nos direitos civis dos cidadãos, na essência laica da República. Como também ocorre com o “Deus seja louvado” do dinheiro, que quando Lula assumiu, certamente seu governo jamais teve coragem de mudar.

Da mesma forma, é inadmissível que haja um crucifixo no plenário do Supremo Tribunal Federal. Para não falar em feriados religiosos - católicos, bem entendido - que se tornam feriados nacionais.

Como ficam os cidadãos brasileiros de outros credos ou os sem credo? Os judeus, os muitos seguidores de religiões politeístas de origem africana, os budistas, os muçulmanos, os partidários de crenças orientais também politeístas, os agnósticos, os ateus?

Deus deve ser reverenciado por quem crê, deixado em paz, sobretudo, durante campanhas eleitorais, onde, aí sim, seu nome é invariavelmente usado em vão.