ONTOLOGIA DA LIBERDADE:A MULHER EM UM CONTEXTO CRISTÃO

INTRODUÇÃO

A palavra ontologia deriva do particípio presente do verbo einai (ser), isto é, de on (ente) e onta (entes), dos quais vêm o substantivo to on: o Ser. No entanto, é o ser enquanto ser. Heidegger propõe que se distinga ôntico de ontológico; a primeira “se refere à estrutura e à essência própria de um ente, aquilo que ele é em si mesmo, sua identidade, sua diferença em face de outros entes, suas relações com outros entes”. Enquanto que ontológico “se refere ao estudo filosófico dos entes, à investigação dos conceitos que nos permitam conhecer e determinar pelo pensamento em que consistem as modalidades ônticas,” e os métodos adequados necessários para estudar cada uma delas.

O que é a realidade? Como se nos apresenta? Marilena Chauí (2000) chama-nos atenção para a visão do que nos rodeia, ao afirmar que “Nunca saberemos o que é e como é a realidade em si mesma, separada e independente de nós”. Ela se apresenta como um fenômeno, organizada pelo “sujeito do conhecimento segundo as formas do espaço e do tempo e segundo os conceitos do entendimento”. Então, o que é essa realidade construída pelo sujeito. Daí surge à metafísica, pois o conhecimento não vem das coisas, mas a partir das idéias da consciência para as coisas.

Chauí faz uma análise dos entes, divididos em classe: os materiais naturais que consistem nas coisas reais, pedras, rios, frutas, árvores, etc., os materiais artificiais, que são criados pelo homem, e que estão inseridos no nosso cotidiano, como a cadeira, o carro, o telefone, computador, chuveiro, etc., o entes ideais, esses são concebidos pelo pensamento lógico, matemático, cientifico, filosófico, etc., entes positivos e negativos, que chamamos de valores, o feio, o bonito, mau, bem, etc.; e os entes que chamamos de as idealidades e os valores e aos quais damos o nome de metafísicos; nessa categoria estão inseridos a “divindade, o absoluto, a identidade, a alteridade,” etc.

1-liberdade e poder na construção de valores sociais e políticos

Para Foucault, o poder é uma prática social e construída historicamente. O poder não é visto como objeto natural, uma coisa. “O poder social constitui-se de relações desiguais, a partir das relações de força presentes no meio social”. Sua analise é importante para entender as desigualdades sociais, incluindo ai o papel da mulher. Ele é tecido, urdido dentro da estrutura social, é fundamentalmente sócio-político-ideológico.

Jacques Derridá tem um dos mais importantes trabalhos sobre liberdade, a partir da teoria da desconstrução. "A mulher e a feminilidade são tidas como sujeitos que passam a ser identificados com algumas características a partir do masculino, tendo atualmente várias questões abertas em relação às suas próprias definições, que estão geralmente pautadas pela questão masculina que as definiu anteriormente". Para o autor, a mulher representa, no pensamento de Derrida, "a pluralidade que rompeu com as certezas únicas, masculinas, e que abriu a possibilidade de várias configurações, específica para cada instante, plural e ao mesmo tempo única a cada momento em que ela se apresenta."

2-Os papeis nossos de cada dia

No cotidiano, chamamos de coisas reais, aquilo que podemos tocar, e tudo o que podemos construir; dessa forma, está incluído tudo aquilo que adquirimos a partir do que conseguimos criar. Que está fora de nós. Quando pensamos em entes idéias, construímos a realidade a partir da idéia que se nos apresenta, um exemplo clássico, o do cavalo, vemos o cavalo, sabemos que é real, no entanto, é uma idéia, é conceito, que existe unicamente como conceito.

Assim, estabelecemos relações entre o eu com a realidade, ora coisa, ora ente metafísico, pensante, cheio de sentimentos e que ao mesmo tempo, produz sentimentos, atitudes, cria, destrói, estabelece, desvincula. Nessa busca de se fixar no cosmos, enquanto realidade percebida, nas ações e relações, quer estabelecer um lugar, traçado, conquistado e assumidamente seu, meu, de todos.

O ser que busca a unidade na diversidade, um ser aberto ao novo, que aprende a cada dia, ler entre espaços o que não foi dito, escrito, realizado, mas camuflado das reais intenções e ações. Na construção dessas relações, surgem as distorções sociais e políticas, fruto das nossas percepções da realidade.

O primeiro lugar onde se busca identidade na realidade social é a família. É no ambiente familiar que descobrimos o mundo, e com ele, os seus limites. Limites esses que nos são impostos e que muitas vezes oprimem e reprimem sentimentos puros, mas que na órbita social é considerado deselegante, foge aos padrões sociais estabelecidos e, dessa forma, são construídos estereótipos necessários para dar forma à sociedade local.

A grande dificuldade é saber diferenciar as descobertas pessoais, das experiências alheias; exige autoconhecimento e certo distanciamento da realidade dos outros, para filtrar o que é real, entre o geral e o particular. Num momento em que, ousa-se olhar para dentro de si próprio, tem-se a certeza de que os temores, desejos, anseios, estiveram sempre ali, a mão, mas onde estava à coragem de ser? O problema está precisamente ai, não é apenas um corpo, que pode ser analisado a partir da biologia, da psicologia, da física, mas um corpo que tem uma alma, no sentido filosófico, consciência, o intelecto, enquanto ser que descobre, avalia, e adquire para si valores necessários para sua inserção na sociedade, na civilização.

Vemos uma nova ontologia, que vê os indivíduos como seres no mundo, e que esse mundo existiu antes de nós, e que, no entanto, temos a capacidade de transformá-lo, de conduzi-lo a partir do despertar da nossa consciência intelectiva com criatividade, com cientificidade e na apreensão desse conhecimento, desenvolvemos tecnologias.

Essas descobertas se sucedem, não sem antes experimentar o medo, mas nessa caminhada, construímos um caminho, onde o medo de olhar para dentro de nós próprio, para os outros, para as carências, para as fantasias e para os desejos, não nos afugentam mais. Nesse encontro, não há a exorcismo total, capaz de domá-los, expulsá-los e promover uma limpeza tal, que nos liberte dos fantasmas interiores. O agora nos impõe a necessidade de ousar pedir ajuda. Pode não ser entendido, pode se parecer desconexo, mas é um tremendo passo em direção ao autoconhecimento. Nessa busca, a excelência é a nossa meta.

Ousar é sempre uma atitude que só se concretiza, quando há um sonho, um ideal que incomoda de tal maneira que não realizá-lo, causaria muito mais sofrimento e desesperança. Quando será que um indivíduo diz a si próprio: realizei um sonho, conquistei um ideal, isso me basta, não preciso e nem quero mais nada, pode significar paz interior, esperança mesmo no meio das confusões da vida?

As descobertas podem significar mudança do próprio código de ética. Romper com dogmas, outrora importante e necessário. Essas mudanças podem evidenciar até, que eu vejo você, por isso me vejo; ou será que porque me vejo, vejo você? Descobrir a possibilidade de viver autenticamente, mesmo que isso não signifique ter uma existência perfeita, dentro dos critérios éticos cristãos são etapas. Viver autêntico, palavra de ordem que embora, durante o processo se torne algo constrangedor e difícil, pois há uma necessidade de se esconder, de se resguardar para não fornecer ao outro, munição contra si mesmo.

3-A mulher

O desafio de nascer mulher, de ser mulher na história da humanidade não tem sido uma tarefa fácil, ao contrário, a cada década, século, milênio, carrega-se o peso de ser um ser sem alma, sem propósito se não para procriar filhos legítimos, não contadas, vitimizadas por violência dentro e fora da família, cidadãs de segunda categoria.

A história está repleta de situações que demonstram a força e a agudeza do opressor, com sede de poder e submissão do oprimido, baseada na premissa do detentor que tudo pode, tudo faz e a tudo quer conquistar.

Recentemente o Dr. Malcon Montgomery concedeu entrevista ao Jornal-Ação da ANABB, a seguinte afirmação: “a mulher tem contra si, cinco formas de opressão: a cultura patriarcal, o poder econômico, a igreja-indutora de culpa, a natureza e por ultimo os padrões de beleza”.

O comportamento da mulher do Século XXI precisa mudar! Mas, em quanto tempo essas mudanças se processarão? Atitudes que privilegiem boa auto-estima, valorização independentemente se sua atividade for remunerada ou não, não aceitar a tirania da moda e da beleza, não se deixar depreciar, usando o corpo como escudo erotizado, para prevenir ou induzir a agressão física e sexual, aprender a tomar decisões e assumir os riscos e louros por elas.

Mudar a sensação de estar sempre em desvantagem, em relação a alguém ou alguma coisa.

Olhar-se é mergulhar num labirinto de contradições, pois na maioria das vezes, o que se encontra, é uma mulher ressentida, com sentimentos que vão da culpa a rejeição. Agasalhar sentimentos frustrantes e depressivos, numa gangorra de autodepreciação, fornecendo a si e aos outros, material para depreciá-la e a autorização para boicotar a si mesma. Pensar nos sentimentos conflitantes que vão sendo aninhados na alma, guardando sempre para si mesmo, é um desafio somente superado ao desafio de expulsá-los.

A mulher atual enfrenta mudanças de paradigmas, onde tenta se desvencilhar da rotina desgastante de mãe, amante, dona de casa e se tornar a executiva, adentrando no mercado de trabalho competitivo, onde precisa demonstrar eficiência em dobro, para ganhar um salário diferenciado do seu colega, exercendo as mesmas funções. Afinal, o que é dependência e o que é liberdade nesse contexto? Isso é realidade ou utopia? A questão está na percepção da mulher em poder definir qual o papel que deseja desempenhar e o que realmente desempenha, ao transitar na vida profissional com liberdade, reconhecimento, salário considerado compatível com sua função. Para muitos, a liberdade esta representada no poder de andar, pensar, crescer, correr, viver sem medo. Para outros, é aquilo que o dinheiro e o status social podem dar e comprar.

Vêem-se no cotidiano, mulheres que trabalham como profissionais nas mais variadas funções, mas que ainda não conseguiram se libertar da rotina doméstica, assumindo para si a responsabilidade de manter tudo em ordem, a despeito de quantos more no mesmo domicilio. Uma pesquisa recente demonstrou que mesmo em casais que tem a mesma profissão, dentro de uma classe média a alta, o escritório residencial é dele, o computador é dele. Ela escreve, estuda, lê em diversos lugares, numa mesinha no quarto do casal, ou na cozinha, ou no trabalho. A execução de várias funções vai surgindo, como se fosse um fator natural de sua capacidade de aglutinação; a executiva que desempenha vários papéis; gerencia sua empresa, é dona-de-casa, mãe e esposa. Ser capaz de driblar horários e atribuições pode torná-la sensível, gerando uma visão distorcida de si própria, de toda poderosa, forte, ao mesmo tempo em que se põe na condição de vítima, pela exploração, ausência de valorização de suas atribuições; ressentindo-se quando boa profissional, da desconfiança dos seus colegas homens.

Muitas mulheres sofrem violências as mais diversas, violência física, sexual e psicológica de seus companheiros, pais, irmãos, etc. Essa é uma realidade vivenciada por mulheres das várias classes sociais e de todos os credos religiosos. A mulher continua a ser objeto de dominação. Mesmo a prostituição feminina, considerada a mais antiga “profissão” do mundo, também representa a forma mais clássica de dominação e humilhação, pois essas mulheres estão, sempre a serviço dos homens, disponíveis. Tornando seus corpos, objetos erotizados para se sustentarem, embora a infelicidade seja nota dominante entre elas.

4-A igreja

A sociedade constrói seus nichos e estabelece normas de conduta. A sociedade de forma mais abrangente agrupa instituições como a escola, a igreja e a mais importante de todas, a família. Num ambiente em que não é fomentada a vida espiritual, a igreja é um referencial distante, mas a escola é referencial de grande valia, pois se espera que ela trabalhe a educação formal e doméstica que os pais não conseguem dar a contento. Valores familiares, às vezes, são transferidas a escola e a igreja. Nesse particular, vemos a perda de controle e ausência de autoridade que deveria ser exercida pela família, pela escola e pela igreja. A família transfere a autoridade e a responsabilidade da educação doméstica, e a igreja recebe igual papel.

A construção do comportamento vai sendo elaborada, a despeito da percepção da realidade. As coisas vão se articulando e costumes são incorporados sem que haja reflexão quanto à validade do seu uso. Nesse sentido, usos e costumes acabam fazendo parte do contexto social e eclesiástico, sem o filtro da realidade da formação de tais usos, que não fazem necessariamente parte do contexto bíblico, influenciando as condutas dos seus membros e nesse particular, falando dos cristãos evangélicos.

A submissão da mulher é largamente difundida, imperiosamente pregada, sem uma leitura histórica da realidade em que o contexto bíblico foi escrito. Difundido pelas próprias mulheres. Ela sai da tutela do pai para a tutela do marido, mesmo quando há leis que igualam seu papel ao do homem na relação familiar. Incluindo aí, o servir ao marido. Onde a mulher leva sempre a culpa de uma vida sexual insatisfatória para ambos.

Vive-se uma guerra durante o dia com brigas e xingações, descasos e depreciação do outro. Vive-se outra guerra à noite, quando tudo que o indivíduo quer é deitar e dormir, esquecendo mais um dia infeliz, na esperança de acordar com a possibilidade do próximo ser melhor, e assim vivem-se anos, na mais completa infelicidade e apatia. A mulher por sua vez, cedeu tanto, que a noite ainda deve cumprir seus deveres de esposa, ou seja, servir ao marido; muitas jamais tiveram um orgasmo, numa cultura atual que valoriza os multiorgasmos. Outras, não têm esse problema, mas esse universo é ínfimo.

Relacionamentos saudáveis são possíveis de existir, desde que não estejam alicerçados em modismos sociais, fomentados pela mídia, que através das novelas inculcam valores generalizando a situações especificas. Vale salientar que esses modismos adentram as casas de cidadãos comuns, cuja única diversão é ficar em frente da telinha, após um dia de trabalho exaustivo.

A sociedade precisa lutar para formar famílias que se tornem nichos de proteção e suporte. Olhar o passado sem saudosismo, mas vê-lo como possibilidade de tirar lições que produzam crescimento, olhar para o futuro, vivendo com os pés no presente, sem temer os fantasmas do passado e prosseguir.