A jusante ou à jusante?...

As regras de emprego da crase são um dos principais calos da língua portuguesa, penso que ninguém discorda disso. De vez em sempre pinta uma dúvida, e a gente tem dois caminhos distintos a tomar, a depender da pressa: 1) pesquisar a respeito, numa boa gramática, ou 2) abraçar o achismo e dar um belo chute, com 50% de chance de errar. Não vou atirar a primeira crase porque também estou no time dos “ora com pressa, ora sem pressa”, de modo que já dei meus chutes, e em 50% deles acabei quebrando a crase, digo, a cara, tanto que ultimamente tenho optado pelo pedregoso, porém firme, caminho da gramática, que é pra não gastar à toa tinta da impressora ou da caneta com uma crase que não deveria estar lá.

É bem verdade, também, que alguns, ou muitos, não dão a devida atenção aos detalhes da redação, por julgar isso como sendo perda de tempo com algo de menor importância no contexto do documento que se redige (o qual, estando tecnicamente correto, terá dado o recado pretendido, assim poderiam pensar) ou por mero desprezo mesmo (“isso é filigrana, picuinha, frescura” – já ouvi alguns dizerem, como se buscar escrever corretamente fosse dispensável).

Pois bem, as locuções “a jusante” e “a montante” não levam crase. Assim como tantas outras do gênero. No passado, cheguei a grafá-las com crase, devo confessar, mas depois que aprendi a lição não errei mais, ao menos nesses casos (tenho quase certeza disso). Tenho visto por aí, com certa frequência, “à jusante” e “à montante” em documentos como cartas comerciais, atas de reunião, relatórios técnicos e e-mails, muitos dos quais vão parar nas mãos de quem vê a boa redação como algo tão importante quanto o conteúdo técnico do documento (se a redação é descuidada, poderão pensar que o conteúdo técnico também o é).

Daí porque, sem querer dar uma de professor de português (eu não teria tal competência), achei oportuno dar uma pausa nos meus afazeres para escrever estas linhas, com a melhor das intenções construtivas. E olha que há mais o que fazer à minha espera... ou “a minha espera”, sem crase mesmo, porque aqui, tratando-se de pronomes possessivos femininos usados em função adjetiva (minha, tua, sua, nossa, vossa), a crase é facultativa, agradando igualmente aos “ora com pressa” e aos “ora sem pressa” (que felicidade!... por que não fazem mais regras democráticas assim?...).

Voltemos à crase (aqui, com crase)... Como sabemos não se emprega esse acento antes de palavras do gênero masculino (no clube do bolinha crase não tem assento), pela simples razão de que crase nada mais é que a fusão do artigo feminino “a” com a preposição “a”. E, não raro, se vê por aí “venda à prazo”, que, convenhamos, dói na vista tanto quanto a expressão “dói nas vistas” dói nos ouvidos de quem ouve essa afronta ao vernáculo, ou na vista do sujeito que lê tal barbaridade, quando escrita (cá entre nós, quem tem “vistas” deve enxergar mais que o Superman). Já “venda à vista” tem crase, pois se assim não fosse alguém poderia entender que o cara está sugerindo a alguém que ponha sua vista à venda, sem venda ou tapa-olhos. E, convenhamos, não se pode vender órgãos humanos, entendendo-se vista como sinônimo de olho (ou olhos), haja vista ser ilícita tal conduta, tipificada como crime no Código Penal brasileiro.

O problema é que “jusante” é substantivo feminino, daí porque, imagino, muitos acabam empregando a crase. Como chegou a acontecer comigo naqueles tempos em que meu cocuruto era fartamente coberto de vistosos fios de cabelo castanhos, qual fosse um amontoado de crases faceiras ao sabor do vento, sem regra nenhuma para atormentar aquela, hoje saudosa, (des)ordem capilar...

Seguem várias locuções que não levam crase:

a álcool

a bel-prazer

a boa distância de

a bombordo

a bordo

a bordoadas

a braçadas

a cabeçadas

a cacetadas

a calhar

a cântaros

a caráter

a cargo de

a cavalo

a cerca de

a certa altura

a certa distância

a chibatadas

a começar de

a contar de

a curto prazo

a dedo

a diesel

a distância (mas: à distância de)

a duras penas

a ela(s), a ele(s)

a eletricidade

a escâncaras

a esmo

a essa(s), a esse(s)

a esta(s), a este(s)

a estibordo

a expensas de

a facadas

a ferro

a ferro e fogo

a frio

a fundo

a galope

a gás

a gasolina

a gosto

a grande distância

a granel

a instâncias de

a jato

a joelhadas

a juros

a jusante

a lápis

a lenha

a longa distância

a longo prazo

a lufadas

a lume

a mais

a mando de

a marteladas

a medo

a meia altura

a meia distância

a meio pau

a menos

a meu ver

a montante

a nado

ante as

a óleo

a olho nu

a ouro

a pão e água

a par

a partir de

a pauladas

a pé

a pedidos

a pequena distância

a pilha

a pino

a pontapés

a ponto de

a porretadas

a portas fechadas

a postos

a pouca distância

a prazo

a prestações

a princípio

a propósito

a público

a punhaladas

a quatro mãos

a querosene

a respeito de

a rigor

a rir

a rodo

a seco

a seguir

a sério

a serviço

a sete chaves

a socos

a sono solto

a sós

a termo

a tiracolo

a tiro

a toda

a toda a brida

a toda força

a toda hora

a toque de caixa

a três por dois

a trote

a valer

a vapor

a vela

a velas pandas

avião a jato

a zero

cara a cara

cheirar a perfume

cheirar a rosas

de alto a baixo

de cabo a rabo

de fora a fora

de mais a mais

de mal a pior

de parte a parte

de ponta a ponta

de sol a sol

dia a dia

em que pese a

face a face

fazer as vezes de

folha a folha

frente a frente

gota a gota

hora a hora

lado a lado

meio a meio

palmo a palmo

para a frente

passo a passo

perante as

reduzir a zero

terra a terra

todas as vezes

valer a pena