A PEDRA E O URSO POLAR – JAMAIS DESISTIR

Milton Pires

Há, em cada conversa entre amigos, algo de doloroso..de melancólico e às vezes quase torturante que nos faz, com alguma frequência, lembrar que certos inimigos são melhores..Os amigos, quando muito próximos, queridos ou inteligentes trazem, todos eles, na vida de cada um de nós, algo em comum e muito perigoso: nós não os escolhemos..eles aparecem e entram na nossa história sem se explicar..sem pedir e nós não podemos notá-los, não podemos percebê-los até que um dia se vão e, aí sim, sabemos que tínhamos grandes amigos porque os perdemos. Alguém já disse que podemos escolher nossos inimigos..Nossos amigos; não..

Dia desses, num dos plantões da minha vida, eu conversava com uma amiga...Nosso tema não era amizade. Pelo contrário; falávamos sobre inimigos..Sobre um tipo novo de inimigo que parece, aos poucos, ir entrando na vida brasileira de uma maneira que mais lembra àquela das fortes amizades que acima descrevi. São inimigos por acaso e aquilo que os define não é, de maneira alguma, o ódio mas a mais completa indiferença..

Às vezes, quando me recordo de pessoas que muito me prejudicaram profissional e pessoalmente aqui em Porto Alegre eu consigo finalmente, aos 44 anos de idade, reconhecer gente assim. Eu imagino, num exercício muito paranoico mas ainda assim muito filosófico, pessoas que um dia julguei inimigas perigosas falando, com a máxima sinceridade, em termos amenos sobre mim..em termos quase piedosos e, diria eu, possivelmente até generosos no que se refere às lembranças por mim deixadas....nos enfrentamentos e discussões..nos xingamentos e conflitos que fazem com que aquele que de mim se recorda adote um tom acidental...um tom sem raiva nem rancor que traz um pouco daquela tristeza dos que se lembram de certos acidentes..de certas tragédias ou eventos de uma natureza qualquer que traz em si sempre a mesma substância comum...sempre a eterna impressão de que eram, todos eles, inevitáveis..

Houve pessoas na minha vida com quem percebo ter colidido..ter batido de frente com aquilo que era, até então, a rota de vida escolhida pelo infeliz..Essas pessoas, penso eu, nada fiz para magoar, humilhar ou ofender..eu nada fiz para machucar ou desmerecer mas, imagino, consegui “atrapalhar”..consegui “obstruir” como uma pedra enorme no meio do caminho e que precisa, a qualquer custo, ser removida.

Sobre pedras há que se dizer o seguinte: nos ofende sua indiferença..sua “agressividade passiva” que nos obstrui impávida a estrada da nossa ambição..da nossa enlouquecida ambição por aquilo que nem Freud soube explicar e que hoje se vulgarizou na palavra poder...palavra que, descendo à planície do povo, perdeu seu elemento mágico, seu caráter transcendental e próprio do que nos seria capaz de infundir respeito e que, justamente por não infundir respeito algum, precisa tanto do temor..desse temor silencioso que nos ronda no dia a dia ..que nos cala mais que às pedras e nos reduz à condição da “melancolia feliz” daqueles que sabem que vamos todos morrer e que ignoram, coitados, que nem todos vamos viver antes disso que escolhemos chamar de morte...

Quando hoje penso nesses que um dia chamei de inimigos não é mais ódio a sensação que tenho..isso se foi faz tempo e, se me perguntarem se os perdoei, respondo de todo coração que não sei...O perdão pode existir entre inimigos verdadeiros..entre aqueles que se escolheram como tais e juras e ofensas trocam com a mesma intensidade dos amantes e dos enamorados que a razão perdem para expressar o que sentem...Imagino eu ter chegado, e queira Deus seja isso verdade, numa fase da minha vida em que não tenho mais inimigo algum...em que sou simplesmente um protagonista de um acidente....de um certo tipo de constrangimento inusitado....como naqueles cenários gelados no extremo do mundo em que se encontram uma enorme pedra e um velho urso polar...A pedra condenada a não se mover..o urso; a jamais desistir...

Para Cláudia...

Porto Alegre, 8 de agosto de 2014..

cardiopires
Enviado por cardiopires em 08/08/2014
Reeditado em 09/08/2014
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