Suco de laranja, açúcar e fumo no mundo da conversa mole do tal livre comércio.

Quando na faculdade, aprendemos nos manuais de economia, os quais seguem o mainstream, que um dos dez princípios da Economia é o de que “o comércio pode melhorar a situação de todos”. Análises matemáticas e gráficas identificando os ganhos com o comércio internacional nos mostram os tais benefícios sociais líquidos que a sociedade como um todo, supostamente, irá ter com a abertura de seu território ao livre comércio. Estudamos as teorias sobre comércio, Smith com sua idéia de vantagens absolutas, Ricardo com suas vantagens comparativas e assim segue. Tudo para afirmar que no “bom”capitalismo onde a livre concorrência está presente tudo fica mais “bonito”quando se tem intercâmbio internacional livre de gravames e funcionando bem. Contudo, os grandes países desenvolvidos os quais pregam o free trade parecem estar seguindo na contra-mão de suas recomendações aos países menos desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, como preferem chamar alguns. Sentimos, então, a presença do velho ditado: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

Os países desenvolvidos, hoje bem estruturados, com amplas redes de proteção social, indústrias supercompetitivas, industrializaram-se por meio de proteção das suas infant industries. Nos EUA recém-independentes, Alexander Hamilton, o primeiro secretário do Tesouro, escreveu uma refutação pioneira de Adam Smith, a monografia On Manufactures, onde ele defendia a proteção às indústrias nascentes como meio de desenvolvimento econômico para seu país e contestava a lógica do livre-cambismo. Hoje, não só se prega o contrário (livre comércio para todos que o desenvolvimento chega) como mesmo o que se prega não é de fato o que ocorre. Quando vemos o “livre” comércio chegar a ameaçar o calcanhar de Aquiles dos desenvolvidos (agribusiness, siderurgia), estes seguem a linha “esqueçam o que eu disse” e afrouxam os bolsos para a concessão de subsídios e uso de outras práticas protecionistas. As estimativas da OCDE são de que os subsídios agrícolas em 2002 chegaram a cerca de 58% do valor da produção agrícola Japonesa, 35% da produção de União Européia e 19% da dos EUA. Recentemente, os EUA aumentaram seus subsídios aos produtos agrícolas e ao aço e a União Européia, no mês passado, aceitou rever sua Política Agrícola Comum (PAC), mas as expectativas não são tão otimistas para uma redução considerável dos subsídios tendo em vista a pressão dos grandes agricultores europeus beneficiados pela PAC, principalmente franceses, frente aos políticos e a incorporação de mais 10 países ao grupo em 2004.

Atentando-nos a questões mais específicas, às relações comerciais entre o Brasil e as principais nações desenvolvidas, encontramos o grande abismo que separa a retórica da prática. O Brasil é, como sabemos, muito competitivo em muitos produtos da agricultura, como os citados no título deste texto, mas encontra grandes dificuldades em exportar tais produtos principalmente para as economias centrais devido ao protecionismo seletivo presente nas mesmas.

No caso do açúcar, por exemplo, as exportações brasileiras encontram as seguintes barreiras à sua entrada nas principais economias:

• Estados Unidos; quotas tarifárias e altíssimas tarifas extraquota. A quota brasileira para o ano fiscal de 2001/2002 foi de 162.422,05 ton / ano. Exportações de açúcar em bruto sujeitam-se a uma tarifa específica intraquota de US$14,60 / ton, cujo equivalente ad valorem estimado em até 10,1%. As tarifas extraquota estão sujeitas a US$338,70 / ton, que para preços entre US$200-250 / ton significam tarifas ad valorem de 140-170%. Estima-se que desde 1982, quando o sistema de quotas foi introduzido, as exportações do açúcar brasileiro para os EUA tenham recuado cerca de 60%.

• União Européia; quota tarifária, subsídios, isenções concedidas a terceiros países, ajuda interna OCM * . Tarifas de 33.9 €/100 kg/net, cujo correspondente ad valorem é 66.39%. Quota conjunta com Cuba e terceiros países de 23.930 ton com tarifa de 9,8 € / ton, ou seja, tarifa de 19%. Subsídio à exportação consolidado na OMC de € 497,0 milhões em 2000. Valor destinado, como ajuda interna, ao açúcar pela OCM em 2000 ficou e torno de € 1.873 milhões.

• Japão; escalada tarifária. A estrutura tarifária japonesa apresenta certa progressividade à medida que os produtos adquirem maior valor agregado. As alíquotas para o açúcar vão desde 35,30 ienes/kg até 103,1 ienes/kg. Isso significa uma tarifa ad valoren que varia de 118,03% a 344,72%.

Já para o suco de laranja as barreiras são:

• Estados Unidos; tarifas. Em 2000, o suco de laranja concentrado reconstituído foi objeto de tarifa específica de US$ 0,0785 / litro (equivalente ad valorem: 56%). A redução da participação brasileira no mercado norte-americano foi de 20% em menos de uma década, passando de 91%, em 1992, para 71%, em 1999. Sem as restrições tarifárias, calcula-se que o Brasil ocuparia todo o mercado americano e o ganho total seria de pouco mais de US$1 bilhão.

• União Européia; quotas tarifárias e tarifas médias elevadas.A tarifa média é de cerca de 33.6% e a quota, para o mundo, de 1.500ton com tarifa de 13%.

No caso do tabaco (fumo), outro produto presente no núcleo duro do protecionismo internacional, temos o seguinte quadro:

• Estados Unidos; apoio aos produtores internos, quotas e picos tarifários. Há, nos EUA, uma determinação de que 75% do fumo utilizado na fabricação do cigarro norte-americano deve ser produzido localmente. A quota brasileira anual é de cerca de 80.200 toneladas métricas enquanto que a tarifa intraquota se expressa em US$ 0,386 a US$ 0,421 por kg , equivalente ad valorem estimado em até 108,2%. Já a tarifa extraquota chega a até 350%.

• União européia; tarifas e ajuda interna da OCM *. As tarifas aplicadas ao fumo variam de 3% a 32%, no caso de desperdícios de tabaco, havendo estipulação de preço mínimo. O valor destinado, como ajuda interna, a tabaco pela OCM em 2000 foi de aproximadamente € 978 milhões.

• Japão; escalada tarifária. A estrutura tarifária japonesa apresenta certa progressividade à medida que os produtos adquirem maior valor agregado. O fumo total ou parcialmente destalado é admitido com tarifa zero enquanto os cigarros contendo fumo são taxados em 8,5% + 290,70 ienes por milhar.

Assim, acabamos de ver claramente com dados da Secex (2001) que alguns dos principais produtos da pauta de exportação brasileira, a qual não se modificou muito nos últimos 20 anos, são parte integrante de um seleto grupo que se encontra no hard core do protecionismo mundial.

Seguindo na nossa análise, faz-se patente ressaltar algumas características dos EUA no processo global do comércio. Os EUA são sem dúvida um dos mercados mais abertos do mundo, se não o mais aberto, com tarifas gerais médias em torno de 3%. No entanto, o protecionismo seletivo que praticam recai justamente sobre os nossos produtos mais competitivos e significativos na pauta de exportação. Das cerca de 10.000 linhas tarifárias existentes nos EUA, aproximadamente 130 apresentam tarifa acima de 35% (a tarifa máxima cobrada hoje pelo Brasil). Destes 130 itens, 100 estão no setor de agribusiness, sendo, pois, de interesse brasileiro. Isto é que é protecionismo com “precisão cirúrgica” como relata o professor Marcos Jank em texto sobre o tema. Deve-se também lembrar que por trás do protecionismo existem questões político-eleitorais muito marcantes. Todos vimos a importância que a Flórida, grande produtora de laranja, teve nas últimas eleições nos EUA enquanto que o aço representa cerca de 200 mil empregos em regiões do país muito significativas no âmbito eleitoral.

Diante das discussões sobre a formação da Alca e do acordo Mercosul-UE ,tais temas se tornaram de extrema relevância, pois qualquer acordo que não leve em conta tais questões é danoso aos menos desenvolvidos e deve se tornar impossível de ser assinado por um país sério e comprometido com seu povo e seu desenvolvimento sócio-econômico. Infelizmente, as nações mais ricas têm se mostrando relutantes em ceder sobre tais temas. Devemos, assim, ter posições firmes nos foros multilaterais internacionais e nas negociações bilaterais deixando clara a idéia de que sem conversa acertada e objetiva sobre o protecionismo nas áreas que mais interessam às nações menos desenvolvidas nada será acordado. Não se trata apenas de uma questão de soberania, mas até de pensamento racional, para usar um termo presente nos manuais de economia. O fato é que não podemos mais continuar a deixar a conversa mole sobre o tal livre comércio se mascarar, quando necessário, para atender aos interesses dos mais fortes. Nosso suco de laranja, fumo e açúcar merecem respeito, mas pelo andar da carruagem a trilha ao verdadeiro livre comércio ainda se mostra assaz tortuosa.

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Notas:

* OCM - Organizações Comuns de Mercado - políticas setoriais específicas financiadas pelo Fundo Europeu de Orientação e de Garantia Agrícola, mesmo fundo que financia a PAC - Política Agrícola Comum.

# Os dados apresentados estão disponíveis no site http://www.mdic.gov.br/

Ivan Tiago Machado Oliveira

Salvador-BA, Brasil.

Julho/2003

Ivan Tiago Machado Oliveira
Enviado por Ivan Tiago Machado Oliveira em 21/10/2005
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