HISTÓRIA ESCRITA & TRADIÇÃO ORAL

HISTÓRIA ESCRITA & TRADIÇÃO ORAL

Tereza Maria de Lima

Mestranda - UNILAB lorenaeleonelalbano@gmail.com

Resumo: O intuito deste trabalho é interpretar a relação entre a história escrita e a tradição oral, enfatizando os griots, guardiões da história africana e detentores do conhecimento de sua sociedade. Nos textos, os historiadores trabalham com a objetividade das fontes escritas; na oralidade, com as lembranças. Neste contexto, a história escrita se preocupa em investigar o processo de produção do conhecimento histórico e a oralidade, por sua vez, se caracteriza por desenvolver a memória e fortalecer a ligação entre o ser humano e a sua palavra. Nas fontes orais, a fala é considerada divina, tem poder de criação. E a tradição oral africana não se limita à narrativas lendárias ou mitológicas. Ela está ligada ao comportamento cotidiano das pessoas e da comunidade e aos fatos históricos que marcam a vida de um povo. Assim, constitui-se, ao mesmo tempo, religião, conhecimento, ciência natural, arte e história. A reflexão que se propõe é conhecer as partes para desvelar o todo. Este trabalho faz parte da disciplina História Sócio-Cultural Africana e Afro-Descendente, ministrada pelo Professor Doutor Luis Tomás Domingos, do Curso de Mestrado em Sociobiodiversidade e Tecnologias Sustentáveis da UNILAB – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, em Redenção – Ceará, 2014.

Palavras Chaves: Oralidade. Escrita. Griots. História da África. Relações.

Summary: The aim of this work is to interpret the relationship between writing history and its oral tradition, emphasizing the griots, the guardians of African history and knowledge holders of their society. In the texts, historians work with the objectivity of written sources; on orality, with the memories. In this context, the written history is concerned to investigate the process of production of historical knowledge and the oral tradition, in turn, is characterized by develop memory and strengthen the connection between the human being and his word. On oral sources, the speech is considered divine, have power of creation. And the African oral tradition is not limited to legendary or mythological narratives. It is linked to people's daily lives and community behavior and the historical events that mark the life of a people. Thus, it constitutes at the same time, religion, knowledge, natural science, art and history. The reflection is proposed that the parties meet to unveil the whole. This work is part of the discipline Socio-Cultural History African and Afro-Descendant, taught by Professor Luis Domingos Tomás, the Masters Course in Sustainable Technologies and Sociobiodiversity UNILAB - University of International Integration Lusophone African-Brazilian, in Redemption - Ceará , 2014.

Keys Words: Orality. Writing. Griots. History of Africa. Relations.

1 INTRODUÇÃO

Neste trabalho, propõe-se desenvolver o diálogo entre a história escrita e a tradição oral, visando analisar a funcionalidade da história, bem como enfatizar a importância dos griots para o desenvolvimento de estudos sobre a história oral. Partindo do pressuposto de que as organizações somente serão satisfatoriamente compreendidas a partir do momento em que sua história for conhecida, independente da forma.

Na visão de Ichikawa e Santos (2003, p. 2), a história oral é "uma história do tempo presente, pois implica uma percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado". É uma alternativa à história oficial, pois é capaz de captar experiências pessoais mantendo um compromisso com o contexto social; constituindo-se como uma alternativa para a construção da história escrita.

Dessa forma, o ser humano está sempre construindo a sua identidade, a partir de um contexto real, conhecido a partir de evidências, numa complexa e intensa relação entre passado/presente. E a proximidade entre o fato escrito e oral pos¬sibilita um encontro com a objetividade a subjetividade e a coloca como uma fonte adicional para a pesquisa, permitindo que a história protagonize sua identidade e ocupe um novo espaço no contexto social.

Justifica-se esse tema por possibilitar imaginar mais concretamente a herança cultural, hábitos, modos e proezas de um povo, partindo de uma metodologia descritiva. Este modelo de pesquisa estuda as relações entre duas ou mais variáveis de um dado fenômeno sem manipulá-las, iniciando pelo tema: um pouco de história.

2 Um pouco de história

Esse diálogo introdutório - um pouco de história - destaca as modificações que nela ocorrem, tendo como pressuposto a sua própria funcionalidade. Também se questiona a valorização das fontes escritas em detrimento às orais, pois muitos historiadores, identificados com o registro escrito da história, desprezam a importância dos testemunhos diretos e das fontes orais.

A literatura relata que nos anos 70, buscou-se a valorização das experiências individuais, ou seja, deslocou-se o interesse das normas coletivas para as situações singulares. Junto a isso, ganhou força a história cultural, ocor¬rendo um ressurgimento do estudo político e associando-se à história ao estudo do contemporâneo.

Assim, aprofundaram-se as discussões sobre a relação entre passado e presente, enfatizando novos estudos sobre a história. Particularmente, expandem-se os debates sobre a memória e sua aproximação com a história, despertando o interesse dos historiadores para a questão que, em grande parte foi inspirado pela historiografia francesa, sobretudo a história das mentalidades coletivas (CHAUVEAU; TÈTARD, 1999, p. 12).

Nesses estudos, focalizavam-se principalmente a cultura popular, a vida familiar, os hábitos locais, a religiosidade, entre outros, sendo que a questão da memória já estava implícita, embora não fosse investigada diretamente.

A questão central sobre esse tema consiste na afirmação de que a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, uma vez que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo. (HALBWACHS, 2004, p. 55).

E o ato de lembrar parte da vivencia em grupo, das representações do passado e da internalização de representações de uma memória histórica. A lembrança, de acordo com Halbwachs (2004),

É em larga medida uma reelaboração do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada (HALBWACHS, p. 75-76).

Dessa forma, quando entram em contato com as lembranças de outros, elas podem ser simuladas, pois não há memória que seja somente imaginação pura e simples, elas são, como afirma Halbwachs, representação histórica construídas no exterior, isto é, todo este processo de construção da memória passa por um referencial que é o sujeito (HALBWACHS, p. 78, 81).

Nesta temática, a memória individual não está isolada, encontra-se relacionado às percepções produzidas pela memória coletiva e pela memória histórica. A vivência em vários grupos desde a infância estaria na base da formação de uma identidade cultural. As percepções adicionadas pela memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas, eles representam experiência, reencontros, vivências, histórias passadas. Dessa forma, a memória é compreendida como a sucessão de acontecimentos marcantes na vida de um povo.

A história escrita, por sua vez, encontra-se pautada na síntese dos grandes acontecimentos de um país, de uma nação. Nas palavras de Halbwachs (2004) faz das memórias coletivas apenas detalhes. Em suas próprias palavras:

O detalhe somado ao detalhe resultará num conjunto, esse conjunto se somará a outros conjuntos, e que no quadro total que resultará de todas essas sucessivas somas, nada está subordinado a nada, qualquer fato é tão interessante quanto o outro, e merece ser enfatizado e transcrito na mesma medida. Ora, um tal gênero de apreciação resulta de que não se considera o ponto de vista de nenhum dos grupos reais e vivos que existem, ou mesmo que existiram, para que, ao contrário, todos os acontecimentos, todos os lugares e todos os período estão longe de apresentar a mesma importância, uma vez que não foram por eles afetadas da mesma maneira (HALBWACHS, p. 89-90).

Entretanto, se a memória pode ser representada pela vida, por ser expressa por seres vivos, a história escrita se apresenta, por conseguinte, como uma representação sempre passada, incompleta, descontínua. Embora isso seja dialético, posto que as lembranças também podem cair no esquecimento.

Na verdade, a história escrita, enquanto representação do passado se atrela a continuidade e descontinuidade temporais, sendo, pois, uma operação intelectual que demanda análise e discurso crítico. A memória, na visão de Nora (1993) “é afetiva e mágica, emerge de um grupo que ela une, é múltipla, acelerada, coletiva, plural e individualizada (p. 8). Então, como afirma:

A memória, que tradicionalmente conferia às sociedades suas identidades sociais, teria sido sequestrada pela história. Sendo que a primeira seria a vida, e a segunda sempre uma construção problemática do que já não existe. Deste modo, o historiador tenderia ao universal, enquanto o cuidado com a memória remeteria ao concreto, ao que se vincula espacialmente à determinada realidade. A História, segundo o autor, vai transformar a memória em objeto de uma história possível (NORA, p. 9).

Dessa forma, uma memória que já não é memória espontânea, passa a ser produzida. Em termos de reflexão, seria o fim de uma tradição oral, visto que a memória começaria a se esvair. Entretanto, para o autor Michael Pollak (1992):

A memória é um fenômeno construído (consciente ou inconsciente), como resultado do trabalho de organização (individual ou socialmente). Sendo um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. (POLLAK, p. 200).

Assim, a identidade só se constrói a partir de referências exteriores e a memória é resultado de experiências vividas. Portanto, ao lembrar um episódio vivenciado no passado, o ser humano reconstitui o que aconteceu; inicialmente, a partir de reações ou experiências do passado organizadas, ou seja, a partir de uma estrutura já existente, como a linguagem, e de uma disposição que ele tem para lembrar, em seguida, a partir dos fragmentos que sobraram da experiência vivenciada, revelando assim, a tradição oral.

3 Tradição oral

Para abordar a tradição oral, faz-se necessário interpretar as sociedades africanas subsaarianas pela grande importância que dão à oralidade, ao conhecimento transmitido de geração para geração por meio das palavras proferidas com cuidado pelos tradicionalistas – os guardiões da tradição oral, que conhecem e transmitem as ideias sobre a origem do mundo, as ciências da natureza, a astronomia e os fatos históricos.

Nessas sociedades de tradição oral, a relação entre o homem e a palavra é mais intensa, sendo entendida como um dom. Esse dom é aperfeiçoado nas escolas de iniciação e no seio familiar.

Os tradicionalistas não se preocupam com os historiadores fixados pelos documentos escritos, com suas crenças na objetividade das fontes e a concentração no interesse dos períodos mais remotos, embora respeitem às especificidades próprias dos diferentes países com suas distintas tradições historiográficas.

Entretanto, os historiadores que interpretam a história oral subordinam a memória ao relato dos testemunhos sobre o que aconteceu no passado, para eles, esse tipo de fonte seria uma outra história, uma história alternativa, despreocupada com o rigor dos métodos acadê-micos.

Mesmo assim, a tradição oral tem se revelado um instrumento essencial no sentido de possibilitar uma melhor compreensão das representações de grupos ou indivíduos nas diferentes sociedades. E como tentativa de dar conta desta nova visão de documento, a história oral, como afirma Ichikawa e Santos (2003, p. 2), “é uma história do tempo presente, pois implica uma percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado". É uma alternativa à história oficial, pois é capaz de captar experiências pessoais mantendo um compromisso com o contexto social.

Pela compreensão do que é história oral, vale lembrar que foram, sobretudo, os historiadores franceses que passaram a enfatizar o estudo do cotidiano, mostrando que as fontes da história não eram mais somente os documentos oficiais.

No Brasil, a maioria dos cientistas sociais ainda vem o depoimento oral, como fonte subsidiária, com baixo valor histórico, embora essa fonte seja frequentemente utilizada para ilustrar ou comprovar alguma ideia.

O que também é interessante é a oportunidade que se tem de recuperar testemunhos relegados pela história, o que permite a documentação de pontos de vista diferentes ou opostos sobre o mesmo fato, os quais, omitidos ou desprezados pelo discurso do poder, estariam condenados ao esquecimento.

A história oral, contudo, privilegia, enfim, a voz dos indivíduos, não apenas dos grandes homens, como tem ocorrido na história escrita, mas dá a palavra aos esquecidos ou "vencidos" da história. Como diz Benjamin (1985), “qualquer um de nós pode ser uma personagem histórica ao narrarmos as experiências vividas por nós mesmos ou aquelas vividas por outros e a nós relatadas.”

A história dos povos africanos era transmitida oralmente. Era pacientemente passada de boca a ouvido, de mestre a discípulo ao longo do tempo. De modo geral, a importância maior da fala sobre a escrita está presente ainda hoje na cultura de muitos povos, nos vários cantos do planeta.

Entre as nações modernas, onde a escrita tem precedência sobre a oralidade, onde o livro constitui o principal veículo da herança cultural, durante muito tempo julgou-se que os povos sem escrita eram povos sem cultura. Felizmente esse conceito infundado começou a desmoronar. [...] Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro do homem. (HAMPATÉ BÁ, 1982,181).

A oralidade dessas sociedades desenvolve a memória e fortalece a ligação entre homem e palavra. E tradição oral africana não se limita a narrativas lendárias ou mitológicas, ela está ligada ao comportamento cotidiano das pessoas e da comunidade, aos fatos históricos que marcam a vida de um povo. Nesse contexto, qualquer acontecimento pode ser aproveitado para desenvolver vários tipos de conhecimento.

A memória das pessoas que vivem em sociedades orais é maior que a dos indivíduos das sociedades letradas. Nas sociedades da costa ocidental africana, os membros responsáveis pela transmissão das tradições têm uma memória extraordinária, e aprofundam seus conhecimentos durante toda a sua vida.

Os guardiões da tradição oral africana são os tradicionalistas - doma em bambara - são os detentores do conhecimento transmitido pela tradição oral de sua sociedade. Estes domas conhecem a ciência das plantas, das terras, das águas, e também as ciências astronômicas, biológicas, cosmogonias e esotéricas.

Na visão de Hampaté Bá todo este conhecimento “trata-se de uma ciência da vida cujos conhecimentos sempre podem favorecer uma utilização prática” na vida dos membros da sociedade” (HANPATÉ BÁ, 1982, 188). São também conhecidos como mestres de ofício, pois não dominam apenas as histórias e as ciências de seu povo eles também a vivenciam, são, ferreiros, tecelões, sapateiros, marceneiros, lenhadores, pastores de animais.

Mais do que todos os outros homens os domas obrigam-se a respeitar a verdade, pois a fala, que é o instrumento de trabalho deste grupo, encontra-se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia do homem e do mundo que o cerca, a palavra pode criar a paz, assim como pode destruí-la. Se forem pegos mentindo, não podem mais cumprir com suas funções, porque desvirtuaram a palavra, a profanaram, usaram de forma imprudente o conhecimento que lhe foi repassado por seus ancestrais.

Segundo Hampaté Bá:

O que se encontra por detrás do testemunho é o próprio valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade [...]. É, pois, nas sociedades orais que não apenas a função da memória é mais desenvolvida, mas também a ligação entre o homem e a Palavra é mais forte. Lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido com ela. Ele é a palavra e a palavra representa um testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra. (HAMPATÉ BÁ, 1982, 182).

Outro grupo social que também trabalha com a palavra são os dielis – chamados pelos franceses de griots.

4 Os Griots

Griots é como são chamados alguns povos da África, os contadores de histórias. Possuem uma função especial que é a de narrar às tradições e os acontecimentos de um povo. O costume de sentar-se embaixo de árvores ou ao redor de fogueiras para ouvir as histórias e os cantos, perdura até hoje.

Chama-se griot (pronúncia: griô) ou ainda jeli (ou djéli) um personagem importante na estrutura social da maioria dos países da África Ocidental, cuja função primordial é a de informar, educar e entreter. É uma figura semelhante ao repentista no Brasil, com a diferença de que constituem uma casta - costumam casar-se somente com outros griots ou griots, seu equivalente feminino - assumindo uma posição social de destaque em seu meio, pois este é considerado mais que um simples artista. O griot é antes de tudo o guardião da tradição oral de seu povo, um especialista em genealogia e na história de seu povo.

Acredita-se que o termo griot tenha surgido da palavra criado, em português, idioma que desde o século XV influenciou boa parte da região onde se encontram tais cantadores. O griotismo, ou seja, a atividade de griot está presente entre os povos mande, fula, hausa, songhai, wolof entre outros - tais povos estão espalhados entre vários países da África, desde a Mauritânia mais ao norte até a Guiné ou o Níger mais ao sul. Por isso mesmo, o griot tem como profissão coletar e memorizar versos de antigas canções e épicos orais que são transmitidos geração após geração, século após século, e deve fazê-lo sem cometer nenhum erro ao cantá-los. Deve ainda estar atento aos acontecimentos, funcionando como um jornalista.

Os griots também são músicos e muitas vezes as narrativas são cantadas. O Império Mali, sob o comando de Soundjata Keita, por volta do século XIII confere importância notável a esses sábios. A construção da história de base oral é marca dos povos africanos antigos e os griots tem papel fundamental em sua estruturação.

Quando um griots falecia, o seu corpo era enterrado dentro de um baobá , árvore gigantesca cujos troncos são ocos considerada sagrada pelo povo mandinga – habitantes do antigo Mali. Acreditava-se que, ao enterrar o corpo de um griots nessas árvores, suas histórias e canções continuariam frutificando.

Vale destacar que Mandinga, nome de um povo do antigo Mali, se destaca porque entre eles haviam muitos mágicos e conhecedores de ervas medicinais. E como muitos deles foram trazidos para o Brasil, em português a palavra mandinga passou a significar magia, feitiço.

El Fadj Damba Madi Diabate foi um grande líder dos griots no Mali. Na tradição africana, são os griots, não os livros, que transmitem a história de um povo ao longo dos tempos.

Antigamente, durante os impérios da África Ocidental, os griots, além de terem a missão de manterem a história da família, exerciam funções como a de conselheiros do rei ou mensageiros. Eram eles que sabiam como usar a palavra adequadamente. Mas não é apenas por meio da fala que um griot faz seu trabalho. Ele pode escolher se passará a mensagem através do canto ou da dança, por exemplo.

Ser um griot também é ser um guardião dos segredos da vida. Sua obrigação é revelar alguns e manter os demais ocultos para sempre. A sabedoria reside em escolher quais estão no primeiro ou no segundo grupo.

Muitas comunidades durante séculos foram silenciadas pelo processo da colonização. Comunidades Quilombolas, Pescadoras e pescadores, trabalhadoras e trabalhadores rurais, meninos e meninas de rua, e milhares de outros personagens silenciados, mas que hoje gritam e contam suas histórias. Assim, esses saberes partilhados ensaiam alternativas de uma sociedade que necessita de mudanças, para isso é preciso escutar e conhecer o outro, a sua cotidianidade.

Numa cultura oral como a africana, o griot conserva a memória coletiva. Por isso, é costume dizer-se que “quando na África morre um ancião é uma biblioteca que desaparece”. A figura do griot tem uma enorme importância na conservação da palavra, da narração, do mito. Na prática, eles funcionam como escritores sem papel nem pena. Ortografam na oralidade aquilo que deve permanecer embutido na memória e no coração dos seus familiares e conterrâneos, no sentido de manter incrustada a identidade do seu ser e das suas raízes, fundamentada, em grande parte, no seu passado.

No passado, os griots eram contratados por reis e príncipes para enaltecerem as suas qualidades com cânticos durante as cerimônias sociais da corte. Todavia, por vezes, também sabiam criticar os seus mecenas com fina ironia.

Pelo papel social que desempenhavam na corte, os griots gozavam de grande prestígio entre a sociedade tradicional africana. Eram imensamente estimados pelas suas capacidades musicais e poéticas, recebendo boa retribuição pelo seu trabalho. Mas também eram temidos, porque se pensava que dominavam certos poderes ocultos. Por esse motivo, quando morriam, não eram sepultados, sendo o seu cadáver colocado dentro do tronco oco de uma árvore e coberto com ramos, para que os seus restos não contaminassem a terra com os poderes mágicos.

Também podem usar seu conhecimento vocal para a sátira, fofoca, ou comentário político. Como exemplo mais famoso do repertório dos griots temos o Épico de Sundiata, que narra a história de Sundiata Keita, o fundador do Império Mali por volta de 1230.

Os instrumentos utilizados por estes trovadores africanos para acompanhar seu canto são variados e vão desde a harpa africana, a kora ou o balafone - semelhante ao xilofone - até as diversas guitarras africanas, como o akonting, o ngoni, bappe, diassaré, duru, gambaré, garaya, gumbale, gurumi, hoddu, keleli, koubour, molo, n'déré, taherdent, tidnit, xalam e guembri.

Além de todo o valor cultural que os griots possuem no contexto social africano, sua música é, de certo modo, a base para boa parte da música negra que se desenvolveu na América do Norte, em especial o blues. Muitos músicos modernos de Mali, Guiné e Níger, influenciados pelas linhas musicais dos griot e ao mesmo tempo pelas novidades do estrangeiro, acabaram por adotar a guitarra elétrica, aproximando-se ainda mais do som do blues. Os primeiros artistas griots começaram a gravar no início dos anos 1950 do século XX, em discos 78 rpm, como a griotte Koni Coumaré, que acredita-se ser o primeiro artista malinês a gravar em disco.

A tradição oral é muito forte nas sociedades africanas. Muitas das informações de hoje é precedente da história da África pré-colonial é graças ao trabalho dos griots. Desta forma, aprender sobre os griots é fundamental para se entender a história da África.

As civilizações africanas, no Saara e ao sul do deserto eram, em grande parte civilizações da palavra falada, mesmo onde existia a escrita, como na África ocidental a partir do século XVI, pois muitas poucas pessoas sabiam escrever, ficando a escrita muitas vezes relegada a um plano secundário em relação às preocupações essenciais da sociedade.

Estes são menestréis, trovadores, responsáveis por entreterem o público. A poesia lírica, os contos e as histórias são privilégio dos dielis. São classificados em três categorias: os músicos, que tocam instrumentos, cantam, compõem e transmitem as músicas antigas; os embaixadores, que mediam as negociações entre grandes famílias; os genealogistas, que contam as histórias e genealogia das famílias e transmitem as notícias da sociedade.

A tradição lhe confere um status social especial, gozam de grande liberdade de falar – até de mentir se necessário – e tem o direito de receber presentes – diferente dos domas. Essa liberdade com a fala os tornou transmissores das mensagens dos nobres e dos reis, que não tinham o direito de voltar a traz no que diziam.

Dieli é uma palavra da língua bambara, falada pelo povo africano que habita principalmente as regiões do Mali, Senegal e Guiné-Bissau, e que quer dizer “sangue”; e a circulação do sangue é a própria vida, como a palavra que circula. De fato estes dielis circulavam pelo corpo das sociedades como o sangue circula pelo corpo humano. Os dielis conhecem muitas línguas e viajam pelas aldeias, escutando relatos, notícias e recontando a história das famílias.

A possibilidade de se tornar um tradicionalista está ao alcance deste dielis, como de qualquer membro da sociedade, se suas aptidões o permitirem, e se passar pelo processo de assimilação e aprofundamento dos ensinamentos que recebeu desde a infância. Estes diélis passam a ser chamados de diéli-faama, ou griot-rei, e abdicam dos seus direitos tradicionais de dieli, o direito de mentir e receber presentes por seus préstimos.

A tradição oral e as características da memória africana não foram afetadas pela expansão da religião islâmica no continente africano. De fato o islamismo incorporou-se a essa tradição e seus ensinamentos e preceitos passaram a fazer parte da memória africana e a serem transmitidos pela oralidade.

Exemplo da manutenção dessa tradição africana, na costa ocidental africana, com a chegada do islamismo é a permanência da grande memória africana e as formas de sua transmissão oral, que como já vimos são feitas pelos domas e pelos dielis. Logo que a população dessa região aprendeu o árabe, passou a utilizar suas tradições ancestrais para transmitir e explicar o islamismo. Escolas islâmicas na costa ocidental africana eram puramente orais e os ensinamentos da religião eram repassados nas línguas vernáculas – exceto o Alcorão e os textos que fazem parte das orações canônica, que eram repassados em árabe.

O trabalho com as fontes orais para o estudo da história da África é de suma importância. Os testemunhos de fatos passados conseguidos através das fontes orais são tão confiáveis quanto os testemunhos conseguidos através das fontes escritas, pois o testemunho segundo Hampaté Ba, “seja oral ou escrita, no fim não é mais que testemunho humano”. Portanto, um não é melhor ou mais confiável que o outro, tem apenas a forma de transmissão diferente.

5 A história escrita

A produção do conhecimento histórico é complexa, e essa complexidade implica examinar os fundamentos da ciência da história, de modo que se compreenda como é organizado o pensamento histórico.

Essa preocupação fundamenta estudos sobre o conhecimento histórico, sobre o campo da pesquisa histórica, que voltam suas reflexões para o fazer histórico, cientes de que essa reflexão é vital para a escrita da história.

Uma característica básica do conhecimento histórico é a sua própria historicidade. Essa particularidade é que revela a importância de um olhar crítico para a historiografia, da necessária retificação das versões produzidas por historiadores de tempos em tempos, que contribuem para alargar o conhecimento teórico-metodológico da história. Assim, afirma Malerba, se a historiografia é um produto da história, logo tem uma historicidade, o que a torna, portanto, objeto e fonte da história.

Vale destacar a importância de estudos que contemplem as similaridades e as diferenças nos domínios da historiografia, considerando o respeito do método de comparação, salientando que a estratégia comparativa tanto pode resvalar em dicotomia entre o eu e o outro, como pode ressaltar a diversidade de tradições historiográficas de diferentes culturas.

As relações entre a historiografia produzida pelo mundo Ocidental em comparação com a historiografia produzida no Oriente percorre a difusão da cultura ocidental mundo afora a partir da segunda metade do século XIX e demonstra as influências desse modo de pensar na produção do conhecimento histórico oriental, que incidiu, sobretudo, na tradição historiográfica cognitiva. Assim, a introdução da pesquisa histórica ocidental moderna foi o arauto do fim da historiografia de estilo asiático, cujo objetivo era a descrição compreensiva do mundo inteiro.

O debate sobre a história escrita visa repensar o sentido de verdade do conhecimento histórico e afirma a relatividade da representação dos fenômenos históricos, declarando a significação dos testemunhos disponíveis para a construção da explicação histórica.

Nesse contexto, a história escrita merece ser lida e estudada por todos aqueles que se preocupam em investigar o processo de produção do conhecimento histórico.

6 A relação história escrita e tradição oral

A história escrita e a tradição oral surgem como um fundamento ético inerente à produção literária, observando-se, como refere Alberto de Carvalho, “a existência, com valor de necessidade, de qualquer forma de diálogo com as suas respectivas tradições” (CARVALHO, 1995, p.397). Esta relação é vista através da ética, possibilitando ao texto um contato maior com a oralidade.

O nascimento da história escrita conduziu à tomada de consciência do escritor, urbanizado e formado de acordo com os cânones ocidentais, de que era fundamental o diálogo da literatura escrita com a literatura oral.

A história e o desenvolvimento das literaturas escritas mostram que são muitos e diversificados os caminhos assumidos por cada um dos escritores face ao seu passado cultural. E que letrado e não letrado podem formar sua identidade, cruzando a tradição oral com a história escrita.

Dessa forma, o escritor procura a herança cultural que sustenta a sua individualidade enquanto pertencente a uma comunidade, mas não quer perder a consciência do presente, ou seja, não pretende rejeitar o impulso para a recriação incessante da tradição, através do diálogo com as tradições externas à cultura tradicional da sua etnia, região, nação.

A valorização da tradição oral e a fundamentação do tratamento historiográfico interligam-se estruturalmente com a presença, explícita nuns casos e implícita noutros, de modelos literários ocidentais. A relação existente na obra entre oralidade e escrita não está, contudo, isenta de ambiguidades, pelo que importa analisar com alguma atenção as condições desse diálogo.

Interessa considerar a caracterização da voz narrativa e perceber a complexidade da situação enunciativa, por exemplo, um velho conta histórias a um moço que as registra por escrito. Existe, assim, uma fonte oral resultando da memória transmitida do velho ao moço. Este último, por sua vez, instaura-se como narrador propriamente dito, ao recriar ficcionalmente os elementos da tradição e ao assumir diretamente a responsabilidade pela enunciação narrativa. Deste modo, a relação entre dois discursos – diretamente escrita e indiretamente oral – contribui para acentuar a ligação da história ao modo da oralidade e aos elementos historiográficos preservados pela tradição, simultaneamente remetendo para a necessária modelização imposta pela cultura escrita.

Assim, a narrativa pode encontrar os índices mais significativos da relação entre tradição oral e história escrita.

Nesse contexto, depara-se com o discurso do narrador autor e com a transcrição desse discurso como evidência histórica, que representa o discurso oficial, unidos todos por uma relação dialógica, tendo como fonte a tradição oral.

Assim, a narrativa parece sugerir vias de criatividade e revitalização cultural pela fecundação recíproca do oral e do escrito, apresentando como exemplo as tradições africanas e as tradições ocidentais.

Nesse sentido, inferi-se que a oralidade surge valorizada em si mesma como parte da cultura de um povo, onde o poder da palavra falada é acentuado através da introdução de longos discursos dos tradicionalistas, o que simultaneamente reforça a força da oralidade.

As palavras cresciam de minuto a minuto e entravam em todas as casas, escancarando portas e paredes, e mudavam de tom consoante a pessoa que encontravam... Elas percorriam distâncias à velocidade do vento. (KHOSA, 1987, p.65).

É assim a permanência das palavras para além dos limites humanos, possibilitando ao contador de histórias vir a ser o protagonista de sua interlocução narrativa.

Em síntese, pode-se considerar que estão presentes dois modos fundamentais da relação entre a história escrita e a oralidade. Em primeiro lugar, uma dimensão de distância, a transmissão de uma diferença significativa entre ambas as partes e a necessidade de proteger a identidade das tradições orais. Essa distância entre o oral e o escrito é também evidenciada pelo recurso à dupla enunciação narrativa. Entre o velho que conta as histórias e o moço que as escreve, há uma divisão que corresponde à incomunicabilidade entre os seus mundos.

Contudo, desta relação resultam igualmente vínculos, penetrações, influências recíprocas que potencialmente poderão gerar novos valores criativos e um enriquecimento civilizacional. A consciência deste contato efetivo e proveitoso remete precisamente para a existência de um importante espaço dialógico na diversidade existente no meio social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O diálogo apresentado neste estudo, tentou buscar a concretização do objetivo de interpretar a relação: história escrita e oral, buscando uma melhor compreensão da cultura do ser humano e seus legados, no sentido de interpretar memórias, opiniões, ideias, emoções, sentimentos, percepções, comportamento, práticas, ações, atividades, interações, crenças, compromissos, produtos e processos; fenômenos que têm muito a revelar sobre a realidade sociocultural de um povo.

Isto porque uma história, oral ou escrita, se refere a um dado contexto, tendo o presente como continuidade do passado, ou seja, o passado está na vida presente das pessoas.

Um dado importante é que a história oral possibilita captar as experiências elaboradas por indivíduos pertencentes à categorias sociais cujas percepções e intervenções geralmente são excluídas da história escrita.

A história oral tem condições de recuperar a visão das pessoas comuns em seus contextos, trazendo à tona as memórias esquecidas de grupos excluídos do processo civilizatório que, de outra forma, não seriam consideradas.

Todas as fontes históricas são produzidas por agentes históricos em contextos específicos, não representando a realidade, mas uma representação dessa realidade, que inclui um alto grau de subjetividade. Neste sentido, a parcialidade e a falta de objetividade são características de todas as fontes históricas e não especificamente das fontes orais.

Por essas considerações, a história escrita não deixa de ser uma obra que merece ser lida e estudada por todos aqueles que se preocupam em investigar o processo de produção do conhecimento histórico, mas a história oral é um diálogo com o meio social e cultural, e com o conjunto de produções de uma determinada época.

Na verdade, as culturas encontram-se em permanente transformações, e são essas mudanças que se constituem em fontes de conhecimento.

Em síntese, reafirma-se a necessidade de preservar a cultura, seja ela oral ou escrita, que não mais se pode entender como isolada uma da outra. Pois ambas contribuem com a reflexão que o ser humano está sempre a buscar. Como expressa os griots: “Cada dia se aprende algo novo, basta saber ouvir”.

REFERÊNCIAS

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Chuva de Rosas
Enviado por Chuva de Rosas em 22/04/2018
Reeditado em 25/12/2020
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