À imagem e semelhança de Deus

Não apenas ao Cristianismo, mas a outras religiões, principalmente as que adotam o Pentateuco como série de livros sagrados, é comum afirmar que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Entretanto, sob a afirmação, saltam-nos alguns dados que inevitavelmente devem ser postos em análise. Um deles versa sobre a Natureza Humana e traz à tona, na verdade, no mínimo duas idéias básicas contrárias (para resumirmo-las por ora antiteticamente) já bastante difundidas e discursadas. Por um lado, o homem nasceria bom, porém a sociedade o corromperia (é o pensamento mais comumente atribuído ao filósofo Jean Jacques Rousseau). Por outro, persiste também o dizer muito comum de que “o homem é o lobo do homem” (pensamento enfatizado por John Locke) e de que o homem é essencialmente mau (como versa o filósofo Thomas Hobbes).

Esse pensamento pessimista, em que a maldade é inerente aos seres humanos, parte do princípio de que o homem não quisera ser um ser social (para Hobbes), portanto deve adequar-se aos padrões e às leis, mediante medidas autoritárias, que coíbam sua maldade. O pensamento rousseauniano, como dito, ao contrário, vê a sociedade ela sim como corruptora, diante de um ser que nasce inocente e bom por excelência. A sociedade é que é má, ou seja, o seu modus operandi e nosso modus vivendi leva-nos a fazermo-nos um ser mais desprezível do que pudéramos ser se vivêssemos uma vida talvez naturalista, ou selvagem.

Sendo o homem semelhante a Deus, provavelmente é esse pensamento último, rousseauniano, o qual se sobrelevaria – pois Deus, para aqueles que creem na máxima que dá título a este texto, é bom, justo, leal, correto... E se assim é, o homem teria por princípio as mesmas qualidades ou atribuições. Todavia, ao observarmos a infância, período de menor maturidade ao ser humano, e pensarmo-la sobretudo após Freud e a psicanálise, é complicado observarmos uma criança como um ser excelentemente bom. Para além de bondade ou maldade, percebe-se nela um instinto próprio à espécie humana que a faz desde cedo apresentar ambos egoísmo e fraternidade, docilidade e crueldade etc. Sua inocência não a abstém de demonstrar-se má. Esta se firma sim em uma ausência de julgamento em relação aos seus atos e ao seu caráter, que se vai moldando aos poucos.

Nesse sentido, que o homem seja semelhante a Deus não se confere mediante o observável. O homem mostra-se, melhor avaliando-o, bom e mau a um tempo só. Mesmo porque bondade e maldade não são fatores essenciais, mas interpretações morais dadas culturalmente. Para a própria Bíblia, em seu Antigo Testamento, pode ser considerada boa a guerra, chamada às vezes de santa, quando Deus guia o seu povo a dizimar comunidades inteiras em seu nome. Ao mesmo tempo que é considerado mau quem coma carne de porco, proposição ainda hoje seguida pelos judeus, por exemplo. Para um machista misógino, não lhe parece mau que uma mulher apanhe do marido, pois é merecedora muitas vezes. Para a mulher que sofre tais agressões e aos que se solidarizam com ela tal ato é considerado uma maldade extrema. Difícil é, pois, definir o que seja bom ou mau senão culturalmente.

Talvez o bem e o mal devam ser vislumbrados conforme as modernas legislações: É mau aquilo que agride os direitos elementares aos demais, como roubar, matar, provocar discórdia etc. Tais crimes são condenados também pelas escrituras bíblicas, por isso são ditados os Dez Mandamentos a Moisés. Porém, se o homem tem a semelhança de Deus, tais mandamentos já não deveriam estar encravados em sua própria existência? Ele já não os devia trazer em seu íntimo grafados? Por que seria necessário consultá-los?

Uma das explicações seria porque Eva tentou-se a comer o fruto da árvore da ciência, influenciada pela serpente, flertando também com Adão, ambos vindo a se corromper. Todavia, se Deus é incorruptível, o homem, à Sua semelhança, não deveria ser também ele incorruptível? Não, porque lhe foi dado livre-arbítrio. O que quer dizer que em Deus existiria também o conhecimento do que seja maldade, embora Ele seja o Todo, o primeiro Ser, inteiramente bom. O que nos leva a crer que também Ele optou pela bondade. Mas como pode existir o mal ao mesmo tempo em que o Ser seja o Bem por excelência, tendo a Si mesmo criado ou existindo desde sempre? Mistério insolúvel.

A verdade é que provavelmente o homem grafe os mandamentos porque se perceba (luciferinamente) como o contrário de Deus e, para superar a maldade visível em si, imponha a bondade divina como regra. Daí o homem não seria semelhante, mas dissemelhante (teria sido feito à dissemelhança de Deus). Noutro sentido, se o homem instintivamente for bom e mau ao mesmo tempo, então a semelhança com Deus fará de Deus bom e mau também Ele. E Deus será um espelho do homem, como o homem é um espelho de Deus.

Ademais, o homem é feito à Sua “imagem”. – Sabemos que o ser humano tem um corpo funcional. As mãos, por exemplo, evoluíram conforme a necessidade que o homem desenvolveu de criar com elas, modelar, esculpir, produzir ferramentas etc. Para um ser a que é imprescindível manipular objetos, as mãos têm suma importância na evolução (ou na criação, se assim for preferível). As pernas existem já como as patas e pernas dos animais, para que o homem possa se locomover, e seus pés para sustentar o corpo ereto. A boca tem função gustativa e fonadora e é extremamente necessária para nos alimentarmos. Como os olhos para enxergarmos, os ouvidos para escutarmos, as narinas para cheirarmos e assim por diante.

Se Deus é um Ser superior, livre de necessidades físicas tais quais as nossas, para que teria Ele mãos e pernas, por exemplo? Se as tem, Sua superioridade parece desmerecer-se, pois leva-nos a entender que faz trabalhos braçais e manuais, e que tem necessidade de andar. Não estariam os membros ali para bonito só, se à matéria volátil e onipresente de que é feito não necessita de membros. E haja olhos para ver tudo a todo momento! Teria ainda um cérebro à semelhança do do humano? – Não, é o humano que o tem à semelhança de Deus. Porém, para que teria boca (à imagem da nossa)? E ouvidos? É muito complicado pensar uma Natureza Divina de maneira tão rasa e superficial, corpórea e, portanto, limitada. Já que, biblicamente, nem mãos necessitou para moldar o barro, sendo que no “Gênesis” Deus cria o mundo a partir do Verbo, da palavra, dizendo “faça-se”? Ah, então sua boca talvez sirva-Lhe para pronunciar. Para cantar? Entoar-Se em Seus “ons”. É possível.

No entanto, em outras palavras, a ideia de que Deus tenha feito os homens à Sua imagem e semelhança é incoerente demais para ser aceita, ou é incoerente o que pensamos sobre Deus ser eterno, divino e absoluto. Se, por exemplo, existem cores as quais nós homens não conhecemos, como revelam estudos de aparelhos visuais referentes a outros seres, como camarões e borboletas, Deus teria de ter olhos a mais que a semelhança dos homens e, logo, camarões e borboletas teriam olhos mais semelhantes a Deus que nós homens. Por isso mesmo é bastante complexo ver por esse prisma.

Não quero, entrementes, negar com isso a Sua existência ou a liberdade de credo, mas contestar tal falácia. Se há um Deus de supremo poder que tenha criado estas coisas todas e todo o Universo, inevitavelmente a sua matéria é outra e sua forma nada tem com a espécie humana. O que nos leva a interrogar outros muitos preceitos bíblicos, fazendo-nos buscar sempre com muito critério e cuidado a interpretação desses livros sagrados adotados pelas religiões. Crer cegamente nas palavras que lá estão não é sinal de inteligência. É necessário termos em mente que homens são, certamente e sem sombra de dúvida, imperfeitos, por isso têm visões e interpretações imperfeitas do que seja divino. Ao entendermos isso, seremos mais capazes de respeitar o outro com suas opiniões e conviver em meio à diversidade.

E antes que más línguas esbravejem sobre mim, pense-se a criação divina como processo. Pense-se que Deus tenha, com seu sopro vital, dado à luz o mundo mediante os 13,7 bilhões de anos supostos pela teoria do Big Bang, da Grande Explosão. E avalie-se que para Deus, sendo Ele eterno, bilhões de anos não têm a mesma significação temporal que para nós, frágeis seres em invólucros corporais imperfeitos.

Se assim for, tendo sido feitos de energia e matéria, pó de estrelas milenares, teremos sim imagem e semelhança em Deus, nós e todas as coisas, no perfeito funcionamento molecular e atômico, desde os prótons e dos elétrons e desde as coisas incognoscíveis que possam nos habitar, sobre as quais jamais entenderemos nem teremos respostas algumas.