O recalque e as relações com o “eu” e com os outros

Na visão psicanalista o inconsciente é a primeira estrutura do aparelho psíquico, constituído por conteúdos reprimidos por censuras internas. Na estrutura inconsciente habita os desejos e conteúdo que são armazenados como uma tentativa de proteção do indivíduo para atenuar o sofrimento das lembranças traumáticas e de expor o que não pode ser “aceito”. Ainda na estrutura psíquica definida pela psicanálise, encontram-se o consciente e o pré-consciente. O primeiro são informações das quais temos ciência, analisamos, entendemos. No pré-consciente encontramos uma porção do consciente facilmente acessível.

No nosso inconsciente também habitam as nossas diversas experiências que causaram algum tipo de sentimento doloroso. O consciente, filtra e censura os traços de memória que levam a angústia e por defesa manda essa memória de volta para o inconsciente. Essa instância psíquica foi aprofundada por Freud através de sua técnica de associação livre que se tornou um fundamento da psicanálise. Essa técnica tem como principal foco deixar o paciente falar livremente, sem barreiras. Para Freud, a escuta, assim como a fala, assume um lugar central da psicanálise.

Ao analisar os pacientes, Freud tentava acessar os conteúdos inconscientes e percebeu que os mesmos encontravam barreiras quando em contato com memórias que tentavam esquecer. A este mecanismo de defesa, Freud denominou de recalque. O termo recalque no dicionário significa uma pessoa que se sente ameaçada ou insegura e o significado de recalque diz respeito as pessoas que criticam os supostos responsáveis por coisas erradas na visão dela. Este conceito está arraigado na sociedade moderna e se relaciona muito mais com a inveja que se tem do outro do que com seus próprios sentimentos.

O recalque no conceito freudiano não é o que não aceitamos no outro, mas sim a negação constante daquilo que pode nos causar dor e sofrimento. São memórias, sentimentos e pensamentos que ficam reprimidos no nosso consciente. Porém, o consciente tem brechas e, às vezes, deixa que estes pensamentos venham à tona, causando angústias no indivíduo.

O recalque também é uma maneira de ocultar de nós e dos outros pontos negativos da nossa personalidade, além de desejos que podem desequilibrar as relações sociais. Na dinâmica social são definidas regras de comportamento para um exequível equilíbrio nas relações dos indivíduos em grupo. São regras limitantes aos impulsos inconcebíveis em sociedade que contém os nossos desejos obscuros, lançando profusamente uma série de restrições, nos orientando a prudência. De maneira consciente aceitamos esse contrato social porque a exposição causa sofrimento e não temos energia para ir de encontro a estas imposições sociais.

Se por um lado somos severamente julgados pela o status quo social, por outro disfarçamos a pressão interna projetando nos outros as nossas frustrações e não realização. A busca pelo prazer é constante e não nos contentamos com o que temos. Logo a felicidade passa do campo material e passa por algo que está acima das nossas pretensões, virando uma ideologia longe de se tornar real. O artigo publicado por Freud em Viena, com o título O Mal-estar na civilização, tem um dos destaques como a seguir:

“O programa de ser feliz, que nos é imposto pelo princípio do prazer, é irrealizável, mas não é permitido – ou melhor, não somos capazes de – abandonar os esforços para de alguma maneira tornar menos distante a sua realização. Nisso há diferentes caminhos que podem ser tomados, seja dando prioridade ao conteúdo positivo da meta, a obtenção de prazer, ou ao negativo, evitar o desprazer. Em nenhum desses caminhos podemos alcançar tudo o que desejamos. No sentido moderado em que é admitida como possível, a felicidade constitui um problema de economia libidiana do indivíduo”. (FREUD, pg 15, 1930)

A sociedade na época em que foi publicado o artigo sofreu algumas alterações na sua constituição com inserção de tecnologias, comunicação e os conceitos sociais. Porém, as relações do indivíduo consigo mesmo e com a sociedade parece enfrentar os mesmos embates. Porque não importa a época ou cultura em que vivemos, sempre existirão regras que limitarão os nossos desejos e controles internos da mente para nos proteger de nós mesmos e nos auxiliar a suportar a ambiguidade de nosso ser. Viver em sociedade é estar sempre recalcado, não porque desejamos o que não nos pertence e que está ou é do outro, mas porque não aceitamos parte do que somos.

Como na música de Oswaldo Montenegro “... metade de mim é o que eu grito, a outra metade é o silêncio”, somos metade do bem e do mal, da luz e da escuridão e essa relação das metades, bem como o recalque são fundamentais para a nossa sobrevivência. O que Freud propunha é conhecermos essa outra metade, não para negá-la, mas para compreendê-la e reviver lembranças como forma de crescimento e fortalecimento. A busca do “eu” é constante porque o indivíduo se perde entre a negação de tudo que é e daquilo que deseja ser.

O Mal-estar na civilização. Viena: Editora Psicanalítica Internacional. 1930

Flávia Barbosa
Enviado por Flávia Barbosa em 17/10/2019
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