ENTRE O POPULAR E O ERUDITO: O PAPEL DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA NOS ENSINOS FUNDAMENTAL E MÉDIO

Segundo Pierre Bordieu, na voz de Patrice Bonnewitz, a cultura escolar é a cultura da classe dominante. Em outros termos, o que pretende salientar o autor é que a escola legitima a cultura da classe burguesa como única e incontestável, relegando, ou melhor, desprezando as outras formas culturais e de experiências que não se encaixam nesse modelo burguês. Isso porque tanto a escolha das disciplinas, como a própria linguagem simbólica (regras, comportamentos, ambientes) adotada na escola é produto da relação de forças entre grupos sociais. Assim, segundo Bourdieu, não existe justificativa alguma em se estudar a literatura canonizada e não se estudar as outras formas de linguagem e representação artísticas mais características das classes populares, ou menos consumidas pelos representantes da classe dominante, como a história em quadrinhos, os grafites, o hip-hop, etc.

Como os filhos das classes superiores dispõem de um capital cultural herdado de suas famílias, é mais fácil para eles lograrem êxito no que concerne à assimilação e adaptação às exigências estipuladas pelo sistema escolar. Este capital cultural adquirido logo cedo por essas crianças “compõem um ambiente propício às aprendizagens e explicam o sucesso escolar dos filhos destas classes. Estas aquisições, constitutivas do habitus, produzirão seus efeitos ao longo do percurso escolar. Assim, não é surpreendente que os 'herdeiros', estudantes oriundos da burguesia, sejam super-representados nas universidades, em relação aos 'bolsistas', de origem social modesta”. (BONNEWITZ, 2003, p.115)

Dessa forma, a escola age como impositora cultural — guinada sempre pelo grupo dominante —, cujo principal objetivo é impor a visão de mundo burguesa, e não outra. Daí o fracasso escolar, na perspectiva de Pierre Bourdieu, da maioria das crianças filhas de operários e de membros de classes menos abastadas.

Para que a escola possa realizar a produção social, isto é, garantir a dominação dos dominantes, ela deve ser dotada de um sistema de representação fundado na negação dessa função. Tal é o papel da ideologia, definida numa acepção marxista como um conjunto de representações deformadas das relações sociais produzido por uma grupo ou uma classe e realizando uma legitimação de suas práticas. A ideologia apóia os sujeitos e tende a erigir suas práticas sociais em práticas legítimas, diante dos outros grupos ou classes e/ou classes. (BONNEWITZ, 2005, p.116)

Sob essa perspectiva, não é sofisma afirmar que a escola, longe de ser libertadora, é sim conservadora, pois atua em função da manutenção da ordem vigente e mantém a dominação dos dominantes sobre as classes populares.

Essa dominação, por outro lado, não é feita apenas pela escolha do currículo escolar — que requer dos alunos afastados do sistema um verdadeiro processo de desculturação, de negação do seu próprio modelo de enxergar o mundo —, mas também pelo sucateamento, no Brasil, do ensino público. Ou seja, não bastasse o fato de a escola se mostrar indiferente às diferenças de habitus, implementando uma “pedagogia da ausência de pedagogia”, os alunos do ensino público brasileiro ainda sofrem com o descaso do Estado brasileiro para com a educação pública. Assim, alunos do ensino público, no Brasil, sofrem, concomitantemente, duas exclusões: a de ter um programa curricular extremamente alheio ao seu modo de ver e pensar o mundo e a pouca estrutura que a escola pública brasileira oferece.

Ademais, tem o fato da “diferença da língua”. A língua burguesa comunica um certa ligação com a linguagem, uma certa tendência à abstração e ao intelectualismo. Já a língua popular, mais dinâmica e versátil que a primeira, “se manifesta inversamente, por uma tendência a majorar o caso particular, a desenvolver pouco as argumentações estruturadas, ao contrário das exigências escolares. A criação da cultura escolar aparece assim como um exemplo de violência simbólica”. (BONNEWITZ, 2005, p.120)

Todas essas questões se tornam evidentes e incontestáveis quando transplantadas para uma análise mais estrutural da educação brasileira, em especial a educação pública, ainda mais agravada pelo descaso do Estado. Não que a educação brasileira não seja toda ela excludente e repressora, impondo uma linguagem e um modo de ver o mundo eminentemente burgueses, pelo contrário. Acontece que nesse processo os alunos da educação pública sofrem ainda mais em decorrência do descaso e da falta de políticas sérias para a educação brasileira. A educação, ao invés de estratificar a sociedade, ou melhor, de reforçar a estratificação social vigente, deveria atuar como agente libertador e igualitário entre os diferentes membros sociais, não excluindo a matéria oficial, desde que importante para o crescimento intelectual do aluno, porém não relegando as outras formas culturais de ver e pensar o mundo, de forma a buscar equalizar o erudito e o popular. Eis a meta da educação: tornar o erudito popular e o popular erudito, mais ou menos como o fez Vinícius de Moraes, usando elementos populares e eruditos em sua poesia musicada, muito ouvida e reconhecida.

Tratando-se no ensino da língua portuguesa essa também é a meta. Contudo, ao se afirmar isso é claro que não está se excluindo o ensino da gramática normativa nas salas de aula; o que se pretende é passar esses conhecimentos de uma outra maneira. Primeiramente, no que concerne ao professor, este, ao meu ver, tem servir como uma espécie de elo entre o aluno e a matéria abordada em sala de aula, dando voz ao aluno e respeitando seu tempo e seu modo de ver e perceber o mundo a sua volta. Por outro lado, o assunto abordado não pode ser o mesmo que se dá hoje no ensino convencional, principalmente no ensino do português. Isso porque a gramática é uma espécie de convenção lingüística, um acordo estipulado entre intelectuais e estudiosos, que decidiram estipular o estudo da língua dessa maneira e não daquela outra. Ou seja, quando se convencionou a estrutura básica da gramática normativa do português, o fez se baseando em escritores já canonizados, como Luiz de Camões, Machado de Assis, Eça de Queiroz, dentre outros, excluindo-se completamente o português das ruas e desrespeitando, inclusive, as diferenças regionais.

Não obstante, como se viu, a gramática foi elaborada à luz de escritores de diferentes épocas, o que quer dizer que o português ali contido nunca existiu enquanto língua viva e orgânica de fato, ainda mais que entre Brasil e Portugal, por exemplo, existem significativas diferenças de elaboração lingüística nem sempre respeitadas pela gramática tradicional (normativa). Assim, como o português padronizado como língua oficial foi calcado tendo como base escritores canonizados, somente uma parcela pequena da população, já afeita às leituras de muitos deles, conseguem pleno êxito nas salas de aula, em se tratando de língua portuguesa. Os demais (a grande maioria) claudica e se sentem desestimulados em aprenderem algo que não condiz com sua realidade, com o seu modo de ver o mundo, e acabam se sentindo incapazes de dominar aqueles códigos, achando que não dominam a própria língua da qual são falantes nativos.

Isso porque a gramática tradicional praticamente despreza a língua falada. Fazendo uma simples metáfora é como se a língua fosse um rio corrente, que tivesse em constante mudança, em constante movimento, e a gramática uma poça de água, estagnada e velha. Quando o rio enche demais e transborda, renova parcialmente a água daquela poça, trazendo novas águas e elementos. Assim é a linguagem, e por isso que uma vez ou outra a gramática sofre algumas pequenas alterações. Porém, estas só vêm a acontecer quando as alterações lingüísticas extravasam os meios populares e chegam aos membros da classe dominante.

Cabe, assim, ao professor de língua portuguesa, assim que ciente dessas questões, buscar alternativas do ensino da língua que fujam dessas técnicas, sem, contudo, excluir o ensino do padrão, pois esse se faz importante no meio social. Uma técnica interessante, e que vem dando certa em algumas escolas, é trabalhar com produção textual em sala de aula, estimulando a criatividade e a leitura em sala de aula. Um dos caminhos hoje interessantes é buscar trabalhar com textos acessíveis não somente no meio impresso, mas também em outras fontes, como mídias (literatura falada), por exemplo.

É claro que para se trabalhar com esse tipo de material, supõe-se, no mínimo, que a escola tenha uma biblioteca razoavelmente estruturada. A técnica não é difícil e pode ser uma alternativa interessante para se passar o conhecimento formal, sem excluir, ou sem desprezar as experiências dos alunos. Cada um leria um livro a seu gosto, elaborando em seguida um pequeno resumo escrito do livro e trocando-o com outros colegas, assim como também os livros. Como forma de estímulo à leitura, podería-se tentar as mídias, que instigariam os alunos a buscar, quem sabe, outras fontes. Com a leitura continuada, os alunos, intrinsecamente, apreenderiam com mais facilidade as regras gramaticais, cabendo ao professor, apenas, a tarefa de indicá-los as diferenças entre a linguagem coloquial — viva, criativa e orgânica — e gramática tradicional.

Todavia, a técnica a ser usada é um mero detalhe nessa discussão, na medida em que o escopo deve recair na forma em como é explorado o conteúdo do ensino de língua portuguesa nas escolas brasileiras. Tratando-se a gramática como linguagem formal padrão, acessível aos poucos que têm acesso à cultura denominada erudita, cria-se uma espécie de guerra onde os que dominam o código lingüístico se enquadram mais facilmente nos mecanismos classistas sociais. Quem não domina esse sistema de códigos tem uma oportunidade menor de sucesso, na medida em que não dialoga diretamente com a classe dominante. Enquanto não se altera a o programa curricular no Brasil, o papel do professor de língua portuguesa é servir de ponte entre o aluno e a matéria oficial, sem contudo desculturalizá-lo. Não fazer isso é incorrer ao erro de sempre e perpetuar um preconceito não reconhecido: o preconceito lingüístico.