O ESQUECIMENTO COMO LEMBRANÇA

Toda memória é para seu sujeito o castelo do seu reino, onde lá se encontram seus tesouros mais bem guardados. É lá quem somos. É lá quem fomos. É de lá quem ainda seremos. Sem memória não haveria história. Sem história não existiríamos além de tão somente uma pura biologia que ainda não morreu.

O que seria de mim sem mim? E a mim o que seria sem meu eu. Meu eu só existo, e em mim respiro por dentro, por termos em nós memória do que somos. Somos quem lembramos que somos, mas também somos feitos (como revelou bem Freud) daquilo que esquecemos. Eu mesmo nem lembro da primeira vez que escrevi. Mas sei que aprendi a escrever, porque hoje escrevo e não nasci escrevendo. Quase tudo que basilarmente aprendemos e esquecemos que aprendemos, faz-nos ser a pessoa que a si mesmo e ao mundo se apresenta. Por isso não me surpreendo de tudo e tanto que em mim esqueci.

Se somos feitos também de esquecimentos e deslembranças, então em nossos castelos mentais existem espaços secretos, corredores ocultos e salas e cômodos ignorados. É como se em cada castelo houvesse seus subterrâneos, espécie de catacumbas romanas encobertas e latentes sob a cobertura do asfalto das cidades.

Tudo o que tem em mim, de mim reside em algum lugar da memória. Há lembranças que são facilmente resgatáveis, outras que são insubmissas e que emergem à minha revelia, tendo também as mais difíceis e que exigem algum esforço sobressalente. Tenho lembranças de todos os tipos: as alegres, as tristes, as prazerosas, as dolorosas, as primordiais, as secundárias, as nostálgicas, as selvagens, as sombrias, as claras, as traumáticas, as selvagens, as civilizadas, as verdadeiras, as esquivas, as enganosas, as sublimadas, as ilusórias e até as mentirosas.

Qualquer que seja a lembrança, recordação ou reminiscência, toda ela tem seu adjetivo e seu valor afetivo agregado. Por mais insignificante que aparente ser, nenhuma lembrança é insignificante e desnecessária.

Santo Agostinho, em seu livro Confissões, destaca que “é grande o poder da memória... É um santuário imenso, ilimitado”. Todavia, lembra-nos Agostinho, a memória somente pode ser vista pela visão interna, ou seja, uma lembrança é resgatável quando a enxergamos pela força da atenção que a ela damos. Uma lembrança (traço mnêmico) sem a iluminação da atenção é uma lembrança invisível aos olhos da consciência pensante e recordante.

Todavia, não é porque uma anamnese não é visível que ela inexista no interior do ser humano. Apenas não a recordamos ou rememoramos. Por exemplo: tive o privilégio de ter me alimentado todos os dias ao longo dos meus dias e anos, mas não me lembro da grande maioria das coisas que comi. Vivi meus primeiros 16 anos com a presença diária da minha mãe, porém não possuo recordações resgatáveis de todos os segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses e anos de nossa cotidiana convivência. Na década da adolescência teve um verão em que tinha em mente decorado o telefone de uma namorada. Hoje, sequer sei qual era o primeiro número. Mesmo ilimitada a memória, parece que ela não é tão ilimitadamente rememorável assim.

Santo Agostinho, se indagou: “mas, que é o esquecimento, senão a falta de memória? E como pode ele estar em presente na minha lembrança, se sua lembrança significa não lembrar?”. Realmente, como pode ser a deslembrança uma lembrança? Todavia, muitas vezes não se precisa lembrar de algo para saber que se teve. Sei que tive muitas coisas, embora muitas delas esqueci.

Ora, se sei que experenciei e vivenciei algo, mesmo que não lembre o que foi, como foi e quando foi, tenho em minha memória a lembrança do esquecimento, ou mais precisamente da imagem esquecida. Em princípio isso pode soar ou ser paradoxal e confuso, mas Freud nos ajuda a melhor entender tal fenômeno psíquico.

Freud analisou a questão sob uma perspectiva à época inovadora e revolucionária: o conceito de Inconsciente como instância psíquica. A memória, tem seu caráter seletivo e é uma grande força que nos habita, podendo resistir, reprimir e recalcar. Freud não nos faz enxergar a memória como um puro depósito passivo, que lá vamos quando queremos nos lembrar de algo. A Psicanálise, assim, desvelou que podemos tanto ter o desejo de lembrar quanto o desejo de esquecer. Seja lá por quais motivos.

Desse modo, pelo acima exposto, sei que possuo em meu interior mnêmico mais coisas que minha atenção consegue contemplar. E esse saber do saber da lembrança que não sei lembrar é em mim a própria lembrança do seu esquecimento, assim como foi meu segundo beijo, assim como foi o rosto da minha mãe no caixão do seu velório, assim como foi o número do telefone daquele amor juvenil, assim como foi o que agora não consigo me lembrar

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 18/11/2022
Reeditado em 29/11/2022
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