FÉ BRASILEIRA NO GOLFO

Capelão protestante do Exército britânico no Iraque naturalizou-se inglês, mas nasceu no Brasil

Não existe quase nada em comum entre o sertão da Paraíba, no Nordeste brasileiro, e as imensidões desérticas do Iraque além de bastante calor e um quadro de desolação e pobreza. Lá, como cá, as condições de vida são difíceis – sobretudo, a partir de 2003, quando iniciou-se um conflito que parece sem data para terminar e tem provocado a morte de milhares de civis. Na Paraíba, não existe guerra, exceto aquela perpetrada há décadas contra a fome e a seca. Mas o que quase ninguém sabe é que um brasileiro – vá lá, ele naturalizou-se britânico, mas é paraibano de berço – está atuando no conflito, apesar de o Brasil não ter enviado tropas para compor a coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos. É Carlos Alberto Tomé da Silva, clérigo anglicano e capelão do Exército inglês no Iraque. Missionário ligado a ações sociais quando vivia no Brasil – ele atuou, por exemplo, entre agricultores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra –, Tomé, que ostenta a patente de capitão, é o primeiro brasileiro a ocupar tal cargo. Embora não faça comparações entre o que vê no Oriente Médio e o que deixou para trás no sertão, ele sabe que tudo faz parte de um longo processo de experiência: “Meu passado no Brasil foi como uma preparação inconsciente para a realidade que estou vivendo atualmente”, diz.

Carlos Tomé retornou recentemente do Golfo para um período de descanso e recuperação junto à família, na Grã-Bretanha. O militar rejeita o rótulo de herói, mas basta conversar um pouco com ele para saber que passou por poucas e boas. “Na região desértica no sul do Iraque, a temperatura passa dos 50 graus centígrados”, conta. “E é preciso manter a farda de oficial, que inclui o pesado colete à prova de balas e capacete”. Isso é apenas um detalhe da dura rotina. Sob sua responsabilidade, está o bem estar emocional e espiritual de toda a tropa inglesa. Mas ser capelão não é fácil, além de enfrentar um sol escaldante ele ainda tem que cuidar do lado emocional dos soldados – entre eles, o príncipe Harry, filho de Charles e Diana e terceiro na linha de sucessão da Coroa inglesa. “Quando ele era cadete na Academia Real Militar de Sandhurst, eu já era oficial e sempre nos cruzávamos”, lembra.

Experiência no sertão – Como era de se imaginar, a trajetória de Tomé foi longa. Formado em Teologia e em Letras, ele vinculou-se à Operação Mobilização, agência missionária internacional que envia obreiros para todo o mundo. Depois de trabalhar em São José dos Campos, interior de São Paulo, e viajar por cerca de dois anos pela Ásia e África, ele foi parar no Reino Unido. Ali, trabalhou na recuperação de ex-presidiários, função que acabou lhe proporcionando o acesso à cidadania britânica. Em seguida, Tomé retornou ao Brasil, onde estudou Direito e tornou-se ministro anglicano. E foi entre os sem-terra que pôde colocar em prática seu treinamento evangelístico, fundando uma comunidade anglicana chamada Santo Estevão. Dali, para se ligar à Igreja no Reino Unido foi só uma questão de tempo. “Ao saber da necessidade do Exército britânico em recrutar capelães, me inscrevi e passei pelo processo de recrutamento. Recebi a vaga no Castelo de Windsor, sendo entrevistado pelo bispo da rainha Elizabeth II. Só depois de um curso no centro de Capelania do Exército é que fui para a Academia Sandhurst”, conta.

Segundo Tomé, as agruras da guerra fazem com que seus serviços sejam muito procurados pelos soldados. “Tenho a responsabilidade de cuidar do bem-estar espiritual, emocional e moral das tropas. Somos solicitados por militares que enfrentam conflitos íntimos, problemas pessoais e de relacionamento”, explica. O capelão diz que sua função o obriga a acompanhar o Regimento em todos os lugares – inclusive nas frentes de combate contra insurgentes e grupos extremistas, o maior pesadelo das forças da coalizão internacional. Ele também é responsável pela celebração de cultos e outras liturgias. Além das baixas em confronto, atos terroristas como a ação de homens-bomba já provocaram, até agora, mais de três mil mortes só entre os militares americanos. A principal base de operações do Regimento de Tomé é a cidade de Basra, onde a situação é das mais instáveis.

“Medo, não” – Dos tempos de paz, o capitão tem boas lembranças. “Aqui na Inglaterra, nosso trabalho é oficiar casamentos, batismos e outras solenidades da igreja”, comenta. “Já no contexto da guerra, a situação muda completamente. No nosso departamento de capelania, temos reuniões de preparação e palestras. Aprendemos também quais os problemas mais freqüentes, como lidar com feridos.” De acordo com Tomé, um outro aspecto, que não costuma ser levado muito a sério pelos pastores convencionais, é condição fundamental para seu trabalho – o preparo físico. “É preciso muito treinamento para encarar o calor e as condições do deserto durante seis meses”, descreve, referindo-se ao período que cada militar permanece em campo.

Sobre suas raízes, ele reconhece que a aculturação britânica roubou-lhe bastante do famoso jeito brasileiro. Mesmo assim, o capitão diz que nunca vai anular sua formação. “Acredito que levo um pouco da minha personalidade e da minha cultura”, admite. “Nós, nordestinos, temos muita flexibilidade e nos adaptamos a qualquer dificuldade”, aponta o militar. Quanto a medo – fator sempre presente em situações tão extremas como uma guerra –, ele é taxativo: “Não sei se por ingenuidade ou coragem, nunca tive medo”, afirma. “Não tenho medo de morrer. Acredito que, se a hora chega, você pode estar tomando banho em casa. Não é diferente de estar numa zona conflagrada.”

Fonte: Revista Eclésia - Edição 122

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José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 05/03/2008
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T888341
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