ContraRegra, Capital e Aborto

Em 1984 eu tinha 15 anos, estava na primeira série do 2º grau e morava em Ponta Grossa - uma cidade pequena (na época, menos de 200 mil habitantes) do interior do Paraná. Era um garoto careta, quatrolhos e tímido que estudava violão clássico (vez por outra até participava de recitais), freqüentava a Biblioteca Pública Municipal quase diariamente, lia muito, andava bastante de bicicleta e passava o tempo livre preocupado com a maior angústia de qualquer adolescente: arranjar "o que fazer".

Um dia tomei coragem - infinita coragem e cara-de-pau, dadas as circunstâncias - e perguntei a minha avó Keka se ela me "emprestaria" a guitarra que havia sido de meu querido tio Rúbio Carlos por uns tempos. "É claro, Caco, não só empresto. Acho que eu vou dá-la para você", disse Keka, "afinal, você é o único da família que sabe tocar violão..." Mentira dela, ela própria também tocava, mas sua generosidade ímpar transformou um verão extremamente triste em uma trajetória de fuga para o menino que eu um dia fui.

Após uma pequena apresentação solo no colégio (durante um workshop sobre História da Música!), veio o convite para formar uma banda com os primos Édson e Acir Beraldo. O primeiro havia sido músico profissional, lançara um disco que não vendeu mais que umas "60 cópias" (sic) e sabia tudo de música e eletrônica. O segundo não sabia nada, mas aprendeu a tocar bateria em alguns meses, o suficiente para conseguirmos concorrer no festival de música do colégio (o "Canta SEPAM"), com direito a um pequeno showzinho enquanto os jurados escolhiam os vencedores e a banda de apoio dos outros concorrentes descansava...

No setlist: "Eu não matei Joana D'Arc", "Still Loving You" e outras pérolas da época. Éramos o Cocktail Molotov sem saber que outra banda, clássica no punk brasileiro, já usara o nome.

Ano seguinte, Édson sairia da banda por conta do neném que chegara, mas Acir e eu tocamos o barco. Um colega de turma - André, vulgo "Bruce Dickinson" - comprou a bateria e Acir passou para os vocais (somente em português; uma vez que para canções em inglês ou "qualquer coisa da Legião Urbana" eu mesmo era o vocalista oficial). Davi Wagner nos teclados aprendendo os acordes (pois também vinha de uma formação clássica), Jefferson De Geus na guitarra-solo (nunca vi um músico amadurecer tão depressa...) e Alexandre no baixo completariam o time da primeira banda de heavy-metal que a cidade veria. Obviamente não tocávamos só rock pesado. Trocávamos o lugar dos ensaios o tempo todo (que variou desde a garagem dos pais do André até a casa de cada um de nós, meu quarto incluso) - afinal não devia ser fácil para nossos pais. Tocamos em buracos vários, festivais de colégio, ensaios no nosso colégio para o festival (naquele ano seríamos a banda de apoio de todos os concorrentes) e outros eventos menos abonadores.

Éramos a banda CONTRAREGRA.

No final de 1986 já reuníamos uma turminha que conhecia umas poucas músicas de nossa própria lavra (uma mescla pretensamente louca de baratos pesados) e fazíamos um bom barulho com um repertório que incluía Iron Maiden, Led Zeppelin e Deep Purple, além de pioneiros do rock pesado nacional como os paulistas do Harppia e o veterano Robertinho de Recife (cujo seminal álbum "Metalmania" talvez seja ainda o que de melhor já se fez no estilo no Brasil).

Acabaríamos aprendendo a tocar mais de cem músicas em um ano, e teríamos o prazer de ver a final do "Canta SEPAM" televisionado (!) pela TV Esplanada Canal 7, na época subsidiária da Band e assitido por mais de mil pessoas no Teatro Municipal Pax.

E por que falar de tudo isso, afinal?

Principalmente pelo efeito inebriante da belíssima viagem ao tempo de meninos de outros caras, estes infinitamente melhor sucedidos do que minha bandinha de colégio, mas ainda assim quase contemporâneos e companheiros de inquietações similares: Renato Russo, Fê e Flávio Lemos, Dinho Ouro Preto e tantos outros que dão suas palhinhas no excelente DVD/documentário "Capital Inicial/Aborto Elétrico", que passeia por Brasília com os remanescentes de uma cena musical urbana única e irrepetível na história de nosso país, de permeio a gravações de estúdio realizadas no Rio de Janeiro onde o grupo recria canções da primeira banda dos irmãos Lemos, cujos vocais e letras contavam com a verve ainda iniciante (porém não menos incisiva) do mestre Renato Manfredini Jr.

Uma tocante iniciativa do Capital Inicial, em que a homenagem transcende a qualquer acusação de oportunismo pela sinceridade óbvia das declarações, pelo encanto do reencontro dos amigos, pelo tom sóbrio e pela certeira e respeitosa coletânea/resgate das músicas do ABORTO ELÉTRICO.

Ah! Você quer saber do CONTRAREGRA? Nunca fomos punks, lá no interior o máximo que a gente ouvia eram os Ramones, vivíamos "longe demais das capitais". A banda morreu, como o AE, imediatamente após seu maior show. Mas "kids are kids", e ver que aqueles caras que anos depois me encantariam nos palcos com o imenso sucesso que alcançaram com suas duas bandas (Legião Urbana e Capital Inicial) no fundo, no fundo eram garotos como eu, que amavam os Beatles, os Rolling Stones, o Led, o Deep, os Pistols, o Clash, o Joy Division e tantos outros... é simplesmente bom demais.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 03/01/2006
Código do texto: T94108