AVIVAMENTO INDÍGENA

Evangelho cresce entre o povo macuxi, de Roraima, ao mesmo tempo em que cresce a polêmica sobre presença missionária nas aldeias

Enquanto uma verdadeira batalha institucional acerca dos limites da preservação cultural ocupa o centro dos debates das questões indígenas (ver quadro), uma revolução espiritual se desenrola no extremo norte do Brasil. Mais precisamente, em Roraima, lar da etnia macuxi, o maior subgrupo indígena da região que, atualmente soma mais de 9 mil e ocupa a extremidade leste do Estado e o norte do Amazonas. Por meio do trabalho missionário evangélico, cada vez mais macuxis têm se convertido a Cristo. O avivamento já tem reflexos até mesmo na vida cotidiana da tribo. Marcados por um passado recente de disputas violentas por terras com fazendeiros da região, os macuxis agora experimentam um período de relativa tranqüilidade. “Aqui todos aprendem a cantar os hinos, fazer a leitura, falar de Jesus”, orgulha-se o cacique Cizi Manduca, o primeiro indígena a se tornar pastor metodista no Brasil. Casado e pai de nove filhos – um deles é ministro de louvor –, ele converteu-se na Igreja Evangélica da Amazônia e tira da terra o sustento da família, como qualquer de seu povo. “Ele é um batalhador por sua tribo, prega com entusiasmo mas mantém as tradições de sua gente. Por meio dele é que quase toda a aldeia veio a aceitar a Cristo, e o objetivo agora é alcançar outras tribos com o Evangelho”, afirma o pastor metodista e teólogo Fábio Cachone dos Santos.

A presença evangélica na região tem trazido benefícios para a comunidade. O pastor Cleber Rosa França, que antecedeu Cachone no trabalho metodista na região e que atualmente congrega na cidade de Barra do Piraí (RJ), acredita ter deixado a tribo em boas condições, não somente em questões de ordem espiritual, mas principalmente na melhoria da qualidade de vida de seus habitantes. “Edificamos um galpão na aldeia Maruai e realizamos um sonho antigo dos macuxis, com a construção de um poço artesiano e uma caixa d’água de 10 mil litros Com isso, as crianças não precisam mais beber água barrenta, os animais não morrem de sede na estiagem e as plantações não correm o risco de secar”, comemora.

Igualdade religiosa – Embora o português dos macuxis não seja lá essas coisas, o pastor Manduca garante que a maioria dos habitantes da tribo consegue ler bem a Bíblia. Para poder levar a Palavra, ele conta com o apoio da Igreja Metodista de Boa Vista, a capital de Roraima, que traduz alguns cânticos para a língua indígena. Se o idioma não chega a ser empecilho, além da falta de material didático, a maior dificuldade, segundo o líder, é a ação de padres que procuram impedir o trabalho de missões em algumas aldeias. “As diferenças no entendimento sobre missões sempre estiveram presentes entre as vertentes religiosas. Os mais diversos tipos de reações à forma da atuação missionária dos evangélicos continuarão acontecendo; cabe a nós continuar lutando por aquilo que cremos, exercendo nosso papel de cidadãos no mundo e do Reino de Deus”, aponta Fábio Cachone.

A polêmica entre missões especializadas no trabalho com indígenas e setores acadêmicos que defendem a proibição da presença de evangélicos nas tribos promete dar pano para manga. Pesa na questão, também, uma série de interesses políticos e comerciais. A região onde vivem os macuxi tem sido palco de intensas disputas fundiárias. Em janeiro de 2006, a Justiça federal de Roraima concedeu uma liminar de reintegração de posse da Fazenda Viseu, onde viviam cerca de 100 índios, à sua proprietária, a empresa cerealista Itikawa Indústria e Comércio Ltda. Só que tal medida levou o Conselho Indígena de Roraima (CIR) a entrar com recurso no Tribunal Regional Federal, em Brasília, para reverter a situação e garantir a posse aos nativos de uma grande área chamada Raposa Serra do Sol, que concentra mais de uma centena de tribos.

No mês de março, representantes de igrejas evangélicas de Roraima se reuniram com o governador José de Anchieta Junior (PSDB) para discutir a permanência de missionários e congregações evangélicas na reserva Raposa Serra do Sol. Em resposta ao apelo, o governador declarou que tanto evangélicos como adeptos de outras religiões têm o mesmo direito de manifestar suas crenças em igualdade de condições, e que não vai tolerar discriminação de qualquer uma das partes. “O governo dará apoio no que for preciso”, garantiu Anchieta.

A praça do Centro Cívico de Boa Vista foi palco, também em março, de um protesto em favor dos missionários impedidos de evangelizar nas aldeias indígenas do Estado. Organizado pela Ordem dos Ministros Evangélicos de Roraima (Omer), a manifestação teve direito a faixas, música e orações como ferramentas de campanha. Na opinião de José Edilson Reis de Mesquita, um dos principais envolvidos na organização do evento, tem havido discriminação religiosa na região. Segundo ele, enquanto pastores e missionários evangélicos têm que se retirar das terras indígenas, a própria Fundação Nacional do Índio (Funai) permite a permanência de padres, freiras e pessoas ligadas ao catolicismo.

Por sua vez, o superintendente regional da Funai, Gonçalo Teixeira, garante que a entidade presta o mesmo tratamento para os missionários, independente da religião a que pertençam. “Não é fácil apontar culpados em uma situação dessas, mas entendo que seja um momento de reflexão sobre a relação dos povos indígenas e da sociedade em geral, incluindo as igrejas evangélicas”, conclui o pastor Fábio Cachone dos Santos.

Pelo direito de viver

(Eduardo Ornellas, com reportagem da Folha de São Paulo)

Três anos depois de o casal de missionários Edison e Márcia Suzuki, ligados à agência Jovens com uma Missão (Jocum) enfrentarem um processo judicial por terem salvado crianças indígenas da morte, o tema volta ao debate. Tramita no Congresso Nacional a Lei Muwaji, que combate práticas tradicionais que atentem contra a vida. O nome do projeto é uma homenagem à índia Suruwahá que enfrentou os costumes de sua tribo para salvar sua filha, Atini, do infanticídio. Naquela tribo, como em outras 20 nações indígenas do Brasil, crianças com qualquer defeito físico ou mental são sacrificadas. Atini, que sofre de paralisia cerebral, foi levada pelo casal de missionários, a pedido de seus pais, para receber tratamento adequado num hospital de referência em São Paulo.

Na época, a atitude humanitária dos evangélicos foi interpretada, por setores acadêmicos e antropólogos, como grave agressão à cultura tribal. O Ministério Público Federal chegou a oferecer denúncia contra os religiosos, mas eles não foram condenados. O episódio jogou luz sobre um aspecto da cultura indígena que era desconhecido por grande parte dos brasileiros. Desde então, acirrou-se o debate entre os limites da ação missionária entre os povos indígenas e o respeito à vida. “Nós vivemos sob uma ordem legal e a lei diz que o direito à vida é mais importante que a cultura”, afirma, referindo-se à Constituição brasileira, Maíra Barreto, doutoranda em direitos humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha), cuja tese é sobre infanticídio indígena.

Pela proposta da Lei Muwaji, qualquer pessoa que saiba de casos de uma criança em situação de risco e não informe às autoridades responderá por crime de omissão de socorro, previsto no Código Penal. Em 2004, o governo brasileiro promulgou, por meio de decreto presidencial, a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina que os povos indígenas e tribais “deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos”.

Márcia Suzuki, presidente da ONG Atini, o debate originado a partir do projeto traz à tona a questão da saúde pública desses povos. Sob responsabilidade do governo federal, os indígenas brasileiros são assistidos por entidades com a Fundação Nacional do Índio, a Funai, e a Fundação Nacional da Saúde (Funasa). Contudo, grande parte das carências de recursos humanos e materiais do setor são supridas pelas entidades religiosas, tanto evangélicas quanto católicas, que ainda desenvolvem projetos de preservação cultural e lingüística.

Fonte: Revista Eclésia - Edição 123

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José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 12/05/2008
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T986155
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