LIBERTANDO A DOR e a Musíca de Márcio Faraco

LIBERTANDO A DOR   
 ( clique na opção àudio, logo abaixo do texto,  e ouça a 
     música "A dor na escala Richter", de Márcio Faraco.)
 

Recebi de um amigo um pedido de leitura de um texto, antes da publicação, cujo título é “ Dores”. O fato me incomodou sobremaneira, porque falar de dor é muito complicado, sobretudo quando se trabalha na área de saúde e se lida com a dor alheia todos os dias; além de ter que administrar a sua própria dor. Porém, quero simplesmente tratar do tema, sem esgota-lo. Em razão do pedido e do meu incomodo postei no Recanto “Indagações dolorosas”. Quando fiz duas perguntas:

       Alguém pode me dizer com que escala se mede a dor?
       Qual é o grau de abalo da dor de uma pessoa?

Há algum tempo me dispus a fazer parte de uma Equipe Multidisciplinar que dá assistência a mulheres em tratamento de câncer. Trata-se de um trabalho terapêutico cujo objetivo é minimizar os impactos psicológicos que as dores físicas e emocionais provocam no indivíduo. Como forma de estímulo a que não se pense somente no problema vivenciado com o tratamento. Para tal, foram criadas atividades paralelas que envolvem mais de uma forma terapêutica . Coube-me acompanhar as sessões psicoterapêuticas e em seguida ministrar uma, digamos, aula de literatura. A aula é bem diversificada, e abordamos vários temas, lemos poesias, crônicas, assistimos filmes. Ela é o intróito para o desenvolvimento da expressão escrita. O que estas mulheres fantásticas escrevem pertence somente a elas, são as leituras de suas almas. Algumas compartilham comigo textos. Fico surpresa com seus pensamentos e riquezas. Para muitas aquele caderno de capa dura - que a princípio não foi visto com bons olhos - é o desafogar de suas dores; de expressão de vida, de enfrentamento, e, para muitas será a herança que deixarão para os que lhes são queridos. Uma experiência muito exaustiva, surpreendente e enriquecedora para mim.

As pessoas sofrem de diversas formas, porque muitas vezes não conseguem verbalizar ou entender esse processo que faz parte da vida, que é a dor. A dor integra a vida, mas, nem por isso é necessário entregar a vida à dor. Muito menos deixar de lado tudo mais que a possa aliviar, quer fisicamente, quer emocionalmente. Não há forma de expressão melhor que o falar, mas o falar de uma forma diferenciada, não só para os outros, mas para si mesmo, de observar o que te rodeia, o que te angustia e abrir possibilidades de novos caminhos na transição entre a vida e a morte, entre a alegria e a dor, entre o doce e o amargo. Há uma linha tênue que separa vida e morte, sendo esta última sempre vista como dolorosa, não só para a pessoa em tratamento, mas para seus familiares e para quem assiste ao tratado. É uma tarefa muito dolorosa pensar na morte como parte da vida, embora uma realidade. 

O profissional de saúde que lida diariamente com o assunto, por vezes, também precisa de assistência emocional, e, como não dispõe desse recurso, nem de tempo para tal pensar em meio às ações que necessita tomar com brevidade,   cria para si uma capa protetora que o imuniza da assimilação da dor do outro como se sua fosse. Um escudo de proteção para poder prosseguir a essa árdua tarefa que é lidar com dores. Graças a cabeças pensantes o comportamento frente aos dois grupos que atuam juntos – o doído e o condoído - já está sendo transformado. Há hospitais e clínicas que implantaram projetos de assistência emocional ao tratado e ao tratador. A humanização de procedimentos e da ambientação é um primeiro passo.

Pois bem, o fato é que depois de publicadas as indagações que citei acima, recebi comentários que estão postados para quem os quiser ler, mas, o que me estarreceu foi a chuva de mensagens que chegou no meu e-mail com perguntas e confidências das mais diferentes ordens. Vi com isso que o assunto incomoda muito mais pessoas que se pode imaginar. Não só as que são portadoras de doenças crônicas ou tratam de patologias mais amenas.

A definição de dor, dada pela Associação Internacional para o Estudo da Dor, é: 

  "A dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável,    associada a uma lesão tecidual real, potencial ou descrita nos termos dessa lesão. A dor é sempre subjetiva."

A dor como uma experiência subjetiva, única e pessoal, não pode ser medida com instrumentos  físicos para que possamos mensurá-la. A dor é provocada por agentes externos, o que não deixa de ser um alerta clínico, um sinal vital, como define a Agência Americana de Pesquisa e Qualidade em Saúde Pública e a Sociedade Americana de Dor. Mas, por outro lado, não podemos também deixar de pensar na dor como uma sensação que não é física. Ou seja, existe uma dor física e uma dor da alma. A dor da alma é profunda, indefinida e normalmente ligada às sensações viscerais.

Freud já dizia que a dor “deixa atrás de si rastros permanentes nos neurônios das lembranças”. Então todos estamos sujeitos às lembranças dolorosas, e isso fica gravado em nossa mente como um alerta de que algo não vai bem, mas, nem sempre sabemos entender esse código mental quando pensamos na nossa própria dor. O sofrimento psíquico nos toma de uma forma que sentimos um imenso desamparo, medo, culpa, vergonha, e somos expostos a fragilidade de “não-ser-mais-para-o-outro”. A dor, por ser única a cada pessoa, faz com que cada pessoa queira ser ouvida e entendida na sua linguagem, decodificada e confortada. É um apelo da alma que necessita extravasar sua dor; a dor que o indivíduo não pode mensurar, ou comparar com a dor alheia, a dor latente dele é mais forte que em qualquer outro indivíduo. Costumo dizer que uma pessoa que acabou de perder um dedo do pé não pode se sentir com menos dor do que a de quem perdeu uma perna. Cada qual lida com sua dor de forma diferenciada. Algumas pessoas aceitam o que parece complicado e difícil de ser vivenciado, enquanto outras não aceitam o que parece simples. Isso sempre da ótica de quem está meramente observando a dor alheia.

Assim somos nós, seres humanos, carregados de emoções que pertencem somente ao nosso mundo.

Foram vários os textos que publiquei sobre a dor, aqui no Recanto, e outros tantos de cunho acadêmico. Como disse anteriormente, não pretendo esgotar o assunto aqui, posto que não me sinto competente para tal. Contudo, quero que nós, poetas do Recanto e demais escritores pensemos um pouco sobre a dor e encontremos uma forma, na nossa escrita, para minimiza-la para outrem. Sem no entanto lançarmos mão de expressões piegas como: “ levanta, sacode a poeira e dá...” ou “Deus quis assim!”. Escrever. Esse é o nosso ofício. Ver, observar, e transformar em literatura os fatos da vida. 
Para terminar deixo aqui uma música de um grande artista,  com quem aprendi muito. Uma pessoa mansa e doce que, com muita dor, foi buscar fora do país o reconhecimento e acolhimento que não teve em nosso país e, felizmente, obteve  muito êxito na sua  opção. Estará lançando seu quarto CD - INVENTO - em Paris, no mês de abril deste ano. 

Clique na opção abaixo: áudio, para ouvir a música. Ela revela o retrato do que somos quando frente a nossa dor.


                    A Dor na Escala Richter
                            (Márcio Faraco)

           A terra treme do outro lado do planeta
           Enquanto a calmaria daqui me abala
           Uma outra guerra traz a morte violenta
           E eu aqui comendo pipoca na sala

           Ah, se eu medisse minha dor na escala Richter
           Ou ao menos inventasse uma escala
           Será que a dor de não ter nada se compara
           Na intensidade à dor de quem tudo perdeu

           Qual seria a dor mais forte desse mundo
           Acho que dor talvez mereça ser revista
           Pois a dor que vejo na revista a cores
           Não parece tão real quanto a que eu sinto em mim

           É tanta coisa que se vê como notícia
          Que a importância vira curiosidade
          Não que a morte seja um fato indiferente
          Ou tão distante para ser uma verdade 

          É que na confusão dos sentimentos
          Entre o fútil da princesa e seu amante
          Um terremoto só parece verdadeiro 
          Quando a tv cai de cima da estante.


Agradeço a Deus pela oportunidade, aos meus mestres-doutores que me convidaram para esse trabalho, num momento particularmente difícil; meu reconhecimento aos colegas de Equipe, que se doam fazendo  do "tempo livre" instrumento de liberdade para outros. Minha admiração aos que, sem saber, ensinam com suas dores. Por ética não farei citações nominais.

Divina Reis Jatobá
Enviado por Divina Reis Jatobá em 20/03/2007
Reeditado em 03/10/2008
Código do texto: T419355
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