UMA MULHER QUE SOFREU PARA QUE EU EXISTISSE

Esta é a parte inicial de parte da história de nossa avó paterna, que, ao examinar sua vida para descrevê-la, percebi tratar-se de uma grande heroína de nossa existência. Que esse texto seja um tributo a ela e que todos saibam o quanto me orgulho dessa mulher simples, mas valente.

Futuramente publicarei um pouco mais de sua história, registrando para os nossos descendentes até sua morte em agosto de 2006.

Nossa avó Isabel é filha de Valêncio Marques da Costa Vianna e Paulina Gomes da Rocha Oliveira Vianna. Todos estes são nomes portugueses. Seu nome significa “consagrada a Deus, Casta.

Conhecemos a avó Paulina, nossa bisa, avó de nosso pai. Ela já tinha bastante idade, mas lembramos dela em nossos tempos mais remotos, na igreja e mesmo na casa dela, uma casa grande de quatro águas, construída em madeira, a terceira à direita de quem entra na rua Manoel do Nascimento, na Vila Paim, quando o Davi mal caminhava. Por sinal, sua casa tinha algo muito interessante, que era pressionar um botão na parede e uma luz bem clara acender no teto, luxo que onde morávamos, no Bairro Santo André, ainda não existia. De nossa casa ficávamos apenas aguardando com expectativa a visão das luzes da cidade distante acenderem todas num mesmo instante. Ficávamos a imaginar quem seria tão grande para fazer tal coisa. Mais tarde descobrimos que era Deus o responsável. Ele não apertava o botão, mas criara a eletricidade e os homens que aprenderam a utilizá-la, bem como o que criou a lâmpada com a inteligência que Ele lhe deu. Além disto, criou os homens que fizeram a rede elétrica, os que puseram as lâmpadas e, além de ter criado, mantinha vivo e com saúde o que acionava o botão que acendia todas elas. Ou seriam acesas por fotocélula? Bem, se for assim, ainda Deus é que está por trás.

Nossa avó Isabel era estranha, mas a mãe dela era muito ativa, apesar de seus mais de oitenta anos. Cedo no sábado estava na igreja e no final do culto abria um embrulho de papel pardo e saia distribuindo balas de hortelã para todos os netinhos – nós três, seus primeiros bisnetos, e únicos que ela conheceu, e as outras criancinhas da igreja. Depois de tudo isso, na esquina, vindo da rua Osvaldo Aranha, surgia a avó Isabel, com um outro casaquinho preto, um outro lenço na cabeça e uma sombrinha, acompanhada da Marta e da Marli, igualmente de casaco, ou blusão, mesmo no sol de rachar do verão.

Foi justamente na casa da nossa bisavó Paulina que houve a primeira Escola Sabatina na sede do Município de São Leopoldo, quero dizer, no centro da sede e seus arredores. Em Esteio já existia igreja e a Escola Dom Pedro II desde mais de vinte anos antes, mas esta localidade pertencia ao Município de São Leopoldo até 1954. Nessa primeira Escola Sabatina, que, certamente não foi na Vila Paim, mas na Vila Esperança, numa lomba forte (possivelmente na rua Leopoldo Schiehl), estiveram presentes, com certeza, o irmão Beno Mitank, que, possivelmente oficiou o culto, e sua esposa, também o casal Honorato e Maria Dornelles, além de, certamente, os tios Avelino, Antônio, Lira, Lorival, Rosa, Inácia e outra tia cujos filhos moram em Canoas, todos irmãos da avó Isabel, que estava presente também. Nosso pai tinha uns dezessete anos nesse tempo.

Desde 1950 então, ou 1949, nossos familiares da parte do pai se tornaram adventistas. Por volta do ano de 1964 a igreja estava em um prédio alugado numa das esquinas da rua São Pedro com João Neves da Fontoura. Inclusive encontrei num livro de história da cidade de São Leopoldo, na Biblioteca Pública Olavo Bilac, referência a essa igreja de 1964, que entre os líderes tinha os irmãos Honorato e Maria Dornelles, Davi e Terezinha dos Santos, nossos tios que hoje moram em Taquara, entre outros tantos amados que já não recordo os nomes na lista, mas se algum dia encontrar tal livro incluirei todos os nomes neste texto. Mais tarde a igreja mudou-se para o meio da quadra entre a João Neves da Fontoura e a Osvaldo Aranha, no número 621, onde está até hoje a Igreja Adventista Central de São Leopoldo.

Foi justamente aí que me dei por gente por volta de 1969, balançando as perninhas na escolinha de madeira no meio do terreno, à direita de quem entra, onde quem ensinava sobre Jesus, Davi, Jacó, Abraão, José e muitos outros personagens da Bíblia, era a dona Oscalina Elias com as filhas, Clarice e Cleusa, que eram meninas moças, além de outras irmãs, que vou procurar saber o nome. A igreja ficava no fundo do terreno, num salão de meia-água, construído de um lado ao outro, que ainda está lá, nos fundos da igreja atual.

Aí é que observávamos e admirávamos a avó Paulina, nossa bisa, que morreu em 1975, no mês de agosto, o mês do cachorro loco e o mês que “costumava” matar os velhos, como diziam os velhos, pois o frio era muito intenso. Digo costumava, pois estamos justamente no mês de agosto e tivemos muito verão neste mês, dias de tirar a camisa. A avó Paulina foi sepultada no Cemitério Municipal da Feitoria, próximo à tumba aonde o avô Fridolino, seu genro, a tia Lira, sua filha, e o tio Ivo, seu neto, viriam a ser sepultados dezenove, vinte e um e trinta anos depois.

Nesse tempo morávamos na chácara, cuja casa era muito grande. Certo dia tive vontade de capinar, pois vira o tio Ivo limpando uma pequena plantação de feijão que ele fizera na inclinação que dava no olho-de-boi, mas a avó não me deixou ir para o sol sem um chapéu, oferecendo-me um sombreiro que fora da avó Paulina. Apesar de minha relutância em usar o chapéu, pois temia que a bisa me viesse atormentar o sono, minha avó asseverou que eu só iria à capina com o sombreiro. Então fui, afinal, as crianças tinham sido ensinadas a obedecer aos adultos ou responsáveis. Mas durante a noite foi uma tortura. Passei meu sono fugindo da bisa, que no sonho eu sabia que estava morta e tinha sido enterrada havia pouco tempo. Em uma parte do sonho corri para dentro de um ônibus da Viação Sete de Setembro, que fazia a linha São Cristóvão/Santo André, onde me tranqüilizei, achando que tinha fugido da morta. Mas, caminhando para o fundo do corredor, pois entrara pela porta da frente, olhei para trás e a bisa já estava dentro do ônibus, seguindo atrás de mim. Em pânico, percebendo que ninguém no coletivo se importava com meu desespero, corri corredor a fora e, por sorte, o ônibus não tinha a parede de trás, então pulei com ele em movimento mesmo, pensando que, por ser velha, ela não conseguiria pular. Mas tão logo saltei, olhei para trás enquanto corria e a vi saltando da traseira logo atrás de mim. E assim prosseguiu a perseguição até uma parte do sonho que não lembrei ao acordar e ainda não lembro. Pesadelo de criança que fica escutando as histórias supersticiosas dos adultos.

Nossa avó Isabel saiu fugida (ou roubada) da fartura da casa dos seus pais, que eram comerciantes, para viver dificuldades com nosso avô Fridolino, mas graças ao sofrimento que ela suportou resignada eu existo. Portanto, devo muito a ela, pois foi muito mais forte do que eu, que não tive que suportar tudo aquilo e até hoje não pus nenhum filho no mundo pelo qual tivesse que lutar com os tantos recursos que tenho e meus avós e pais não tiveram. Por isto. muitas vezes me questiono se é inteligente não ter filhos e ir atrás dessa onda de controle de natalidade, perpetuando o egoísmo e o comodismo.

Muitas pessoas podem até dizer que nossos avós paternos puseram filhos no mundo para sofrer, mas estou certo que os filhos deles que sobreviveram, embora tenham sofrido, acham que valeu a pena ter suportado o sofrimento para poder viver e ser feliz nos pequenos e grandes momentos de felicidade e prazer que tiveram na vida e mesmo para vencer as tantas batalhas, justas ou injustas, que venceram. Pessoas que não gostam de seu passado e se envergonham de suas famílias, reclamando também da vida que têm, são ingratas a Deus e a pessoas humanas como eles, que sofreram para que eles vivessem. Demonstram com isto que não merecem a vida que ganharam de graça. Talvez a dignidade de seus antepassados, que os fizeram existir mesmo sofrendo privação, seja uma afronta as suas manias de reis (soberbos), seus anseios por mordomia, por isto são insatisfeitos, desejando ser servidos ao invés de servir, mamando deitados, achando que alguma família foi perfeita algum dia na história da humanidade. Essas pessoas geralmente têm poucos amigos e vivem reclamando dos outros. Quem se envergonha da família que tem realmente não merece tê-la, tampouco ter qualquer família.

Por causa de suas tantas quedas puerperais nossa avô Isabel ficou com as ações lentas, tendo comportamento vagaroso, recolhida e silenciosa, parecendo passional e sinistra. Com um casaquinho preto de lã sobre um vestido largo caído sobre o corpo magro, escondendo o rosto na aba do lenço preto, aos quarenta e poucos anos, quando eu tinha em torno de três e meio, ou quatro anos, de onde vêm minhas primeiras lembranças da avô, ela já era muito misteriosa. Na verdade não era, não escondia nenhum mistério, apenas guardava aquela moça criada no catolicismo antigo, talhada para ser dona de casa e servir ao marido sem reclamação, suportando a dureza imposta pela vida e pelas circunstâncias sem demonstrar abalo.

Perdera tantos filhos, suportara a rudeza do marido, que agora já não bebia, mas restara no coração dela algum sentimento capaz de compor ciúme daquele que um dia ela tinha escolhido para seu príncipe, tanto que imaginava que ele levava o rádio para o trabalho porque tivesse alguém lá.

Ela passava o dia à roda do fogão a lenha, escorada na parede de uma cozinha enorme, com tanta fumaça que mal se podia permanecer no interior, pois os olhos ardiam muito. Mas a avó Isabel lá ficava, como se não sentisse nada, em pé ao lado do fogão, encostada na parede, com um pé sobre o outro, fazendo uma “misturinha para a bóia”, ou uma “misturinha para o café”, qual misturinha certamente era gemada. De lá ela cansava de chamar a Marli e a “Martinnha” para ajudarem, mas as “curtidas”, como o avô dizia, faziam de conta que não ouviam e seguiam com as brincadeiras. De lá ela chamava por mais de uma hora o Cirdo para que “enchesse água”, tirando de balde do poço de treze metros sob a parreira, logo na saída do corredor coberto que existia entre a casa grande e a menor, onde funcionava a cozinha, e colocando na talha de barro, que ficava no outro compartimento da enorme cozinha, onde estava o fogão de lenha comprida que o avô só acendia no inverno.

Quando nós três éramos bem pequenos e não íamos na casa dos avós todos os dias, talvez uma vez por semana, nos sábado, muitas vezes, tínhamos medo da vó. Mas, quando chegávamos, o pai ou a mãe mandava que cumprimentássemos na mão e pedisse a benção. Nós dizíamos: “bênção!” e a vó respondia: “bença fio”. Apesar de que éramos pequenos e ela estivesse sempre de cabeça baixa, não conseguíamos ver direito o seu rosto, a aba muito grande do lenço não permitia.

Recordo um tempo muito remoto em que eles moraram em uma casa de tábua escura na rua Blumenau, onde ficava a Escola Municipal Salgado Filho, próximo a um dos arroios do Bairro Santo André. Em relação a avenida Felipe Uebel, a casa (talvez a terceira desde a esquina) ficava no lado oposto ao do colégio. Uma vez, que recordo com grande clareza, fomos lá com o pai e a mãe e, assim que nos viram, nossos tios pequenos, o Cirdo, a Marli e a Marta, nos arrastaram para suas traquinagens. Eles deviam ter idade em torno de doze anos, o Cirdo, oito, a Marli, e uns quatro ou cinco, a Marta. Recordo de estar nas costas do Cirdo flutuando nas águas então cristalinas do arroio próximo a ponte estreita e de madeira da avenida Felipe Uebel, que era de chão batido.

Pouco mais adiante, os recordo morando numa casa de madeira ao lado de uma casa de alvenaria muito interessante que eles cuidavam. Situada na rua Antônio Celistre, esquina com a Augusto Mayer, no Bairro Planalto. A casa, que hoje é amarela, tinha um poço em seu interior, na cozinha. Numa das vezes que fomos lá, recordo a Marta pequena, com grandes cachos pendentes dos cabelos pretos longos, correndo na frente da casa, dizendo que o “Nedico” e a Lucília estavam chegando com as crianças.

Pouco mais, e foram morar na chácara, que ficava na altura em que a avenida Felipe Uebel se encontra com a rua Alta Tensão, no lado esquerdo desta, para quem sobe em direção à torre da rede elétrica. A cancela da propriedade ficava justamente defronte a Felipe Uebel. No sentido norte-sul, a extensão da chácara ia desde a rua Antônio Justo até a rua Augusto Mayer, sendo uns cento e cinqüenta metros. No sentido oeste-leste, ia desde a rua Alta Tensão até um olho-de-boi além de onde está hoje a rua Onze, que naquele tempo não existia, tampouco existia a extensão da rua Antônio Justo para além da rua Alta Tensão, nem a rua paralela a Alta Tensão, que hoje está ali. Neste sentido, que é a largura, a extensão da chácara era de uns oitenta metros.

Nesse tempo é que começam minhas lembranças mais nítidas dos nossos avôs e tios paternos. Nessa chácara, onde nossos pais nos levavam, principalmente nos sábados à tarde, era a casa da vó. Lá havia um galo enorme e mau, do tamanho do Davi, que mal caminhava, e o galo um dia o encheu de bicadas e esporadas. Também tinha o vô e o Barão, cachorro dele, tipo um fox taludo, que um dia me mordeu no calcanhar e eu chorei sem parar. Lá também tinha muitas árvores frutíferas, pelo menos umas dez variedades de laranjas, além muitas vergamoteiras, muitas goiabeiras, limeiras, pereiras, ameixeiras, butiazeiro, araçazeiro, jabuticabeira, cerejeira, ananaseiros mil, um canavial e até um algodoeiro. Lá também tinha o chiqueiro, local que abominávamos, onde estava o Chico, o porco que o Chico (como o vô chamava o Anecildo) tratava de ração. Era um bicho medonho, sempre de cabeça baixa, vindo por baixo com ar de muito cínico, e a gente tinha muito medo dele, também não queríamos saber de comer sua carne, que Deus disse que não é para comer.

Foi em um sábado à tarde, indo com o pai e a mãe para a casa da vó, que vimos o primeiro avião bem de pertinho, ao menos pelo que recordo este era o primeiro. Seguíamos no último trecho da rua Felipe Uebel, que não era mais do que um trilho de rodas de carros, quando um avião começou a dar rasantes muito baixos sobre a chácara bem à nossa frente, parecendo que passava sob a rede de alta-tensão, o que, ao mesmo tempo em que nos impressionava, causava muito pavor, sendo que a Vera Lúcia gritava e corria em pânico, achando que o avião ia nos atacar ou cair sobre nós.

Quando, ao final de 1973, retornamos do período de um ano em que moramos em Taquara, moramos uns dias na casa que era da Doralina, em frente a nossa amada casa na rua Botafogo, no Bairro Santo André. Nesse tempo já éramos mais grandinhos, eu tinha oito anos, a Vera Lúcia tinha uns nove e o Davi, uns seis, então vivíamos fugindo para a casa da vó, aquele lugar onde amávamos as árvores. Depois fomos morar na Chácara, pois o pai acordou dividir o aluguel com o vô. Ali, ao meu ver, vivemos o momento mais maravilhoso de nossas vidas de crianças, ao mesmo tempo em que os mais pavorosos.

Mas tínhamos nossa avó, nossos tios grandes e os tios pequenos. O Anecildo por essa época tinha uns dezesseis anos e a Marta e a Marli eram menores. Estudávamos no Grupo escolar Dona Leopoldina, um coléginho tipo Brizolinha, na rua André Ebling, na ultima quadra antes da rua Juliana Fortuna, onde tínhamos feito o pré e a Vera Lúcia tinha feito também a primeira série ainda antes de mudarmos para Taquara. O Anecildo não mais queria ir ao colégio, portanto, íamos eu, a Vera Lúcia, o Davi, a Marli e a Marta. No caminho, na altura da torre da rede de alta-tensão, que fica no encontro da rua Flordoaldo Pires Mello, a principal da Caída do Céu, com a Juliana Fortuna e a Alta Tensão, sempre encontrávamos uma turma de colegas do colégio que adoravam nos bater, o que eles faziam todos os dias, pelo que não queríamos ir à escola, apanhando então do pai em casa.

Dado à incompreensão do pai, que não tinha como nos levar à escola para conferir que não mentíamos, pois saia para o trabalho muito cedo, tivemos que apelar para a vó, que muito pediu ao Cirdo que nos acompanhasse, mas ele não fez caso. Então ela disse que iria conosco para resolver o problema. Ficamos afoitos, querendo ver o que os garotos fariam diante da vó. Mas ela não foi com a gente, todavia nos mandou adiante e nos seguiu a curta distância, com seu andar taciturno, com as mãos para trás, a cabeça baixa e o rosto escondido na aba do lenço. Vendo-nos, os garotos correram para nos bater novamente, mas quando se aproximaram, viram, pouco afastada, a vó, que subia passional. Um deles parou de súbito e gritou que corressem, pois disse: “que a ‘véia’ bruxa vinha logo atrás com um trinta e oito nas costas!”.

Não sabemos bem qual o efeito que a vó causou naqueles moleques, mas eles nunca mais se atreveram a se meter conosco no caminho, tampouco no colégio. Certamente que o ar misterioso dela é que nos salvou.