OBEDIÊNCIA PRODUZ SAÚDE, NÃO MILAGRES

Desde bem pequenino conheci o senhor Honorato e a dona Maria Dornelles na Igreja Adventista do Sétimo Dia, que freqüentávamos com nossos pais, na rua São Pedro, 621, em São Leopoldo, Estado do Rio Grande do Sul. Quando crianças, jamais perdíamos um culto da igreja, mesmo após nossos pais terem se separado, e quando já pré-adolescentes, eu e o meu irmão, mesmo que chovesse a cântaros, até nas noites de inverno gelado estávamos na igreja com o irmão Honorato quinze minutos antes do início do culto às vinte horas. Ele chegava cedo mesmo quando não era sua semana de abrir a casa de Deus, pois era um dos anciões.

Desde que percebera esse senhor, quando era ainda muito pequenino, com menos de cinco anos, observava-o e admirava sua postura, a maneira como se conduzia, a firmeza de sua voz nas poucas vezes que falava palavras sempre bem ponderadas, a serenidade com que orara num ritmo bem pausado, além do fato de andar sempre junto com sua companheira, que me parecia muito sensata, a irmã Maria. Quando eu tinha em torno de uns dezesseis anos, após deixarmos o seu Honorato em sua casa depois do culto de uma quarta feira, comentei com o pai como ele era conservado, apesar de seus sessenta anos. Ele respondeu que se eu achava que ele tinha sessenta anos eu estava muito atrasado, pois ele tinha mesmo era oitenta, talvez um ou dois anos a menos.

Em 1998, quando voltei a morar em São Leopoldo, depois de mais de dez anos fora, bem como dezenove anos afastado da igreja, estava muito mais interessado na origem das coisas, pois tinha trabalhado em publicidade, possuíra duas agências de propaganda, além de um jornal de humor com um caderno especial de história dos bairros da cidade de Caxias do Sul, onde tinha morado nos primeiros cinco anos distante. Nesse meio tempo também descobrira muito mais sobre a origem germânica de São Leopoldo, isto por força da história de um dos bairros de Caxias, e estava muito interessado na história da minha cidade natal, especialmente o significado histórico de nossa igreja nela. Por conta disso, passei algum tempo na Biblioteca Pública Municipal à procura de livros sobre a história de São Leopoldo, tendo encontrado alguns registros formais, bem como outros registros menos formais, como o de uma autora que não recordo o nome, mas que estava seccionado por entidades, como departamentos do governo, empresas, hotéis, clubes, escolas, igrejas, etc., falando inclusive sobre a fundação, organizacional e litúrgica da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Tratava de sua sede no Município em 1964, antes ainda de eu ter nascido, na mesma rua São Pedro, porém, em prédio alugado meia quadra mais ao sul, na esquina com a Rua João Neves da Fontoura.

Nas duas páginas sobre a igreja daquele tempo encontrei nomes de líderes como o irmão Aparício e sua esposa, irmã Sueli, que por volta de 1970 foram embora para São Paulo levando os filhos de quem sempre tive muita saudade; do tio David dos Santos, irmão da mãe, e da tia Teresinha, sua esposa, líderes da Escola Sabatina, que poucos anos depois foram morar em Taquara; além do irmão Honorato e a irmã Maria, bem como de outros conhecidos, alguns que freqüentam ainda a mesma igreja.

Muito contente, fiz cópias das páginas do livro, pois desejava mostrar ao seu Honorato e a dona Maria quão grande fora a sua importância em nossa sociedade, a ponto de seus nomes constarem no livro de história do município. Estava certo que eles ficariam muito felizes quando lhes mostrasse as cópias no próximo domingo, durante o almoço para o qual tinham me convidado.

Durante o delicioso almoço vegetariano preparado pela irmã Maria, falamos muitas coisas de Deus, da igreja, dos irmãos e do passado. Ela me disse que minha mãe era muito sua amiga quando ainda solteira e quanto ela a tinha aconselhado sobre o namoro com meu pai. Após o almoço seguimos conversando na varanda, onde seu Honorato, entre uma toscanejada e outra, e a dona Maria me contaram a história de suas vidas.

– Éramos espíritas, meu filho, disse ela de início. Há cinqüenta anos nos tornamos adventistas e vegetarianos. Por falar em vegetarianos, tem comido carne, meu filho? Indagou interessada.

– Infelizmente ainda não sou vegetariano, respondi envergonhado. Mas tenho desejo de ser completamente, esclareci querendo remendar.

– Ninguém pode conhecer a verdadeira saúde comendo carne, meu filho, explicou ela. A carne é extremamente prejudicial para o nosso organismo, além que deixa nossa mente embotada, pois o fica cérebro pesado, com dificuldade de raciocino e entendimento.

– Pois é, concordei. Um dia quero ser inteiramente vegetariano, reiterei.

– Não deixe para o futuro, meu filho, instou ela. Faça isso logo, incentivou. Depois deus seguimento a narrativa sobre sua história:

– O diabo tinha nos dito: “Enquanto vocês trabalharem para mim terão casa para morar e para alugar”.

Havia dois anos eu fora expulso do meu primeiro casamento, arrancado de um relacionamento com uma jovem espírita, a quem eu conhecera cursando Direito em Caxias do Sul. Pouco tempo depois, desfiz-me dos meus negocias na Serra e fomos morar em Porto Alegre. Lá, contra a minha vontade, ela voltou a freqüentar o centro espírita, que muito tempo antes de me conhecer ela deixara de freqüentar.

Surpreso, perguntei:

– Vocês freqüentavam o centro espírita? O senhor era médium, seu Honorato? Perguntei interessado. Quem diria! Jamais esperei que tivessem sido.

– A Maria era médium, respondeu ele.

Dona Maria deu uma risadinha.

– Eu fazia de conta que era, disse ela. Eles me disseram que eu tinha muita mediunidade.

– Isso parece ser procedimento padrão, observei. Eles sempre dizem na primeira abordagem que a pessoa tem mediunidade. Mal conhecem o indivíduo e já dizem que ele é sensitivo. E se a pessoa discorda, dizendo que nunca viu nada, eles dizem que é porque ela ainda não desenvolveu o dom, mas tem muita mediunidade, que precisa ser exercitada. Assim convencem a pessoa ir ao centro espírita cumprir o seu dever fazendo obra de caridade como médium de cura e passes.

– Pois é, prosseguiu a dona Maria. Sendo que eles diziam isso, para não decepcionar, eu fazia de conta que tinha mediunidade. Mas não tinha nada. Era puro fingimento. Na verdade, nunca senti nem vi nada. Já, o Norato, ele era muito fervoroso, acreditava muito. Ele me dizia: “Maria, tu tem muita mediunidade, por isso precisas trabalhar sempre no centro espírita, senão tu podes ficar louca”.

Eu ouvia falar muito mal das crentes. Diziam que elas eram relaxadas, que não depilavam as pernas e as axilas. As imaginava cheirando a corpo sujo com aqueles cabelos despontados, talvez, completamente engordurados. Sentia repúdio só de pensar em estar perto de uma.

Morávamos em uma fazenda numa das extremidades do Município de Ijuí. Ouvia-se muito dizer que iam armar uma tenda de crente próximo a onde morávamos. Por esse mesmo tempo adquirimos uma outra fazenda no lado oposto da cidade e nela fomos morar porque era melhor que a primeira.

Da porta da nossa cozinha vi certa tarde uma figura estanha vindo distante na estrada. Esperei para ver quem seria vestindo fatiota tão alinhada, cabelos lambidos e sapatos tão listrados que refletiam ao sol do entardecer. O homem bem apessoado entrou em nosso portão portando um tarro de leite e seu perfume encheu a varanda quando se pôs junto à porta.

– Boa tarde, dona Maria, disse ele com voz entusiástica. Sou pastor da Igreja Adventista do Sétimo Dia e armamos uma tenda de evangelismo no outro lado da cidade. Mas vou ser seu freguês de leite, pois vamos ser vizinhos. Viemos morar deste lado.

Não acreditando que um homem tão limpo, cheiroso e alinhado pudesses ser um crente, fiquei a olhar sem ter o que dizer.

– Na tenda, dona Maria, continuou ele com seu entusiasmo encantador, vamos ensinar sobre Jesus Cristo. A senhor conhece Jesus Cristo?

– Não, respondi após pequena demora. Só ouvi falar, esclareci.

– E a senhora tem vontade de conhecer.

– Gostaria de conhecer, respondi sem muita certeza.

– Então no próximo sábado à tarde virei para estudarmos sobre Jesus na Bíblia. A senhora topa?

– Sim, respondi ainda sem certeza.

Após encher o tarro de leite, ele se foi, confirmando ainda que no próximo sábado à tarde viria para estudarmos sobre Jesus na Bíblia.

A figura daquele homem me deixara curiosa. Queria saber que crentes eram esses, tão contraditórios, tão limpos, entusiásticos e bem alinhados, sendo que ele tinha uma postura de príncipe.

No próximo sábado, na hora marcada, o Norato viu o homem vindo pela estrada e disse meio enciumado:

– Lá vem o teu pastor.

Pegou a cuia de chimarrão e se mandou para os galpões onde ficou com o filho, não mostrando o a cara por todo o tempo que durou a visita do pastor.

No próximo sábado ele viu o homem vindo e disse:

– Lá vem o teu pastor.

E se mandou para o galpão a tomar chimarrão. Mas não suportou o ciúme e veio pôr o ouvido na parede de madeira da cozinha para ver o que falávamos. E foi ficando cada dia mais curioso, até que, finalmente, entrou, passando a assistir ao estudo comigo. Depois se tornou muito mais fervoroso do que eu.

No centro espírita foi nos dito que tudo o que nos tinha sido dado seria tirado caso nos puséssemos ao lado dos adventistas. Não nos amedrontamos, porém, pois tínhamos descoberto que Jesus tem mais poder que Satanás. Após nos batizarmos, em poucos meses perdemos tudo, sendo que tudo que o Norato tentava dava errado e, por fim, não tínhamos nem mesmo onde morar em Ijuí.

– Por aquele tempo, prosseguiu o seu Honorato, falavam muito mal de São Leopoldo, dizendo por lá que aqui não era mais como antigamente, pois já não era fácil conseguir trabalho. Mas eu não via outra saída, a não ser tentar. Por isto, antes que não tivéssemos mais nenhum dinheiro, viemos para cá com os sete filhos, indo pagar aluguel. Compramos uma vaca de leite com o pouco dinheiro que nos sobrara, mas ninguém apareceu para comprar um litro sequer. Então trocamos a vaca por uma carroça com cavalo, mas em um mês inteiro não pareceu sequer um frete. Então vendemos a carroça com o cavalo e logo tínhamos comido o último dinheiro que ganhamos enquanto servíamos ao demônio.

Mas orávamos muito, pedindo a Deus que não permitisse que desanimássemos, sendo que não queríamos desistir de seguir a Jesus, agora que O tínhamos conhecido de verdade e aprendido a amar depois entendermos o que ele tinha feito por nós na cruz.

Então, inusitadamente, tendo já cinqüenta anos, consegui emprego na CEEE – Companhia Estadual de Energia Elétrica, onde trabalhei por dês anos.

– Puxa! Que maravilha! Comentei. Uma empresa paternalista que pagava muito bem, não é seu Honorato!

– O Norato orava muito, pedindo a Deus que nos ajudasse a comprar uma casa como esta para não termos mais que pagar aluguel, contou dona Maria.

– E com o salário da CEEE vocês puderam comprar, raciocinei entusiasmado.

– Quando fechou dez anos de serviço, recebi a notícia de que ia ser demitido, esclareceu o seu Honorato.

– Puxa! Que azarão! Concluí decepcionado. O senhor pedindo uma casa e o que recebe é a demissão. Bom. Dos males o menor, avaliei. Pelos menos com o dinheiro da indenização daria para fazer alguma coisa.

– Um dia, quando vínhamos na carroceria do caminhão desde a Scharlau, perto da sinaleira do valão, ali na Federal, eu caí da ceve, onde estava sentado como de costume, e um carro passou por cima da minha perna, quebrando ela próximo ao tornozelo.

– Como assim?! Sobressaltei mais aturdido. Mas Deus não estava lhe ajudando mesmo!

– É, meu filho, concordou a dona Maria. Mas por causa do acidente, a CEEE não pode mais demitir o Norato e com a indenização que ele recebeu compramos esta casa.

– Com sessenta anos de idade dificilmente arranjaria outro trabalho, observou o seu Honorato.

– É verdade, concordei. Deus foi muito bom para vocês e foi mesmo seu amigo. Por isto é certo quando a Bíblia diz que Deus escreve certo por linhas tortas.

– E verdade, meu filho, sempre temos vivido da graça de Deus, concordou o seu Honorato.

– E a sua perna melhorou bem?

– Sim, respondeu a dona Maria. Tanto que o Norato trabalhou muito tempo ainda.

– O senhor também nunca ficou doente, não é seu Honorato.

– Não. Somente quebrei a perna naquele tempo e agora.

– O senhor quebrou a perna agora, com mais de noventa anos?!

– Sim, respondeu a dona Maria. Ele foi subir no telhado para varrer as folhas de árvore e caiu de lá de cima, quebrando a perna no mesmo lugar que há trinta e dois anos.

– Puxa, mas que coisa!

– É, concordou dona Maria. E a perna dele não sara mis. Infeccionou e o deixou desse jeito, desanimado.

– Estou certo de que tem um menino ai dentro desse corpo que agora se entrega seu Honorato. Só o corpo é que não corresponde mais.

– É verdade, balbuciou ele com sono.

– Para irmos à igreja sempre dependemos da ajuda dos outros que nos levam de carro, explicou a dona Maria. Temos que estar sempre incomodando. O Norato fica muito triste por isto e por não poder mais ir à igreja de a pé, como íamos antes.

A tarde passou correndo, sendo que foi muito boa. Dona Maria, sempre muito cuidadosa com o seu Honorato, chamou-o para tomar sua refeição do final do dia.

– Vem tomar teu lanche, Norato, enquanto é cedo. Sabe que não gosto que vás dormir de estômago cheio. O sono não é tranqüilo, se justificou ela.

– É, seu Norato, o senhor deve atender a sua namorada, que lhe cuida tão bem, disse carinhosamente olhando a foto do casamento deles ao lado da foto das bodas de sessenta e cinco anos.

Algum tempo mais tarde passei pela casa deles e os vi sentados em cadeiras de praia na calçada. Seu Honorato muito triste, caminhava com bastante dificuldade. Com o braço sobre seu ombro, acompanhei-o até parte da quadra, pois precisava caminhar um pouquinho lutando contra a atrofia.

– Só lamento não poder mais ir até Novo Hamburgo a pé fazer trabalho missionário como fazia há pouco tempo, disse ele. Também não posso mais ir à igreja, o que mais amava. Tenho pedido para Deus que me leve, pois estou pronto para ver Jesus no dia em que ele voltar, quando sei que sairei do túmulo transformado e renovado.

– E o senhor vai estar bem jovem, acrescentei tentando não me entristecer por vê-lo daquele jeito. E estará abraçado com a sua querida Maria, a sua eterna namorada.

Em 2002 sepultamos o seu Honorato no Cemitério Ecumênico Cristo Rei, em São Leopoldo. Ele estava com noventa e quatro anos e somente esteve doente nos últimos dois ou três, mas por conta da perna que não curou por causa da velhice. Quanto a dona Maria, ainda a vi há mais ou menos dois anos. Meu relaxamento é grande, visto que não tenho notícia dessa senhora que, juntamente com seu marido, se tornou para mim um potente ícone da fé nas promessas e da volta de nosso Senhor Jesus. Se ela vive ainda, deve estar beirando aos sem anos.