Ezequiel Moreira da Silva: um retrato em construção

‘Ezequiel, mais valia teres deixado o chapéu em casa!’ Maria Isabel não podia com tanto cumprimento, mas não teve outro remédio se não resignar-se. Pela vida fora, nunca em dias de sua vida por mais que tentasse iria conseguir mudar aquele costume de Ezequiel. No fundo, estou em crer, que o faria num tom que denunciava uma certa cumplicidade de casal antigo que se dá bem.

Homem cortês à moda antiga, sociável até ao tutano, cumprimentava todos os que se cruzassem com ele na rua: ricos ou pobres, velhos ou novos, homens ou mulheres, da terra ou de fora da terra. Com uma excepção apenas, não cumprimentava o culpado pela sua prisão. E pouco mais.

A bem dizer Ezequiel não tirava o chapéu, num gesto delicado, descobria ligeiramente a parte de trás do chapéu que cobria a nuca. A não ser a Deus ou a algum dos seus representantes na Terra, um homem da sua condição social não tirava por completo o chapéu da cabeça, apenas levantava o chapéu, só um homem do povo tirava o chapéu por completo.

Creio nunca ter falado com ele, tenho a certeza de nunca ter falado com ele, e tenho pena disso, posso estar no entanto enganado, dizem-me que se pelava por uma boa conversa, quando muito, tê-lo-ei visto uma ou outra vez, se não estou a caldear memórias, sentado debaixo de uma latada no balcão da sua torre voltado para a rua do Ouvidor. Isto só pode ter acontecido, estou a puxar pela memória de novo, quando ia com minha avó Deodata a casa das priminhas dos Foros. Ou à fábrica comprar sumo de maracujá? À fábrica não, não poderia ser. Não o poderia ver na torre quando ia à fábrica porque a fábrica ficava para o outro lado, para a banda da canada da Palha. Boa tarde, Senhor Ezequiel, saudava minha avó. Boa tarde, Senhora Deodata, retribuía o Senhor Ezequiel.

Sempre ouvi falar dele, em privado ou em público, com muito respeito. Era ‘um homem activo e muito esperto’, diz-se à boca cheia. Falava com velhos e novos, ricos e pobres, dizem-me outros. Alguns afiançam mesmo que era um patrão austero. Outros: que era um patrão como não haveria outro. No entanto, que terá sido ele? Naturalmente, como todos nós, terá sido isso tudo e muito mais. Mas o que importa para o caso deste retracto é que ele foi um homem que deixou às gerações vindouras um legado de amor arreigado à Terra. Enquanto houver Ribeira Grande, enquanto houver a sua memória, tal como diz Jorge Luís Borges, para a memória das pessoas acerca de outras pessoas, Ezequiel não morrerá.

Quem foi este Homem?

Diamantina Adelaide Tavares Moreira deu à luz por volta da uma hora da manhã do dia dezassete de Agosto um filho, que viria a ser filho único, que tomou o nome do pai, Ezequiel. O nome completo do progenitor era Ezequiel Augusto Lopes da Silva. Diamantina nascera na freguesia de São Pedro, a poente (...)

Ribeira Grande

Açores

17 de Agosto de 2010

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 17/08/2010
Código do texto: T2442841
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