"Altamente Intelectualizada" = Memórias de Um Vendedor de Livros"

    1976. Fernandópolis.
    Em uma cidade batizada em homenagem a alguém com o meu nome, eu só poderia me dar bem. E como me dei bem!! Tanto que volta e meia eu percorria as centenas de quilômetros que a separam de São Paulo e me aboletava no Hotel Fernandópolis. As recordações que tenho daquela cidade são as mais agradáveis que tenho de minhas viagens dos meus tempos de Abril Cultural. Lá eu vendi bem, diverti-me muito, conheci muita gente inesquecível no hotel e na cidade toda, e tive algumas aventuras amorosas que não me sairão da memória nem que eu viva mais uns trinta anos ( a não ser que de repente venha um desses males da velhice que nos fazem até esquecer as coisas que a sogra fez...)
  Em uma das muitas vezes em que lá estive, hospedaram-se no mesmo hotel a minha turma da Abril Cultural, a troupe do cantor Roberto Leal e o pessoal do cantor Gregório Barrios.
   Eu, nos meus vinte e nove anos, marido já havia cinco (besta...), estava no auge do exibicionismo e assanhamento pela vida, pelas mulheres, pela diversão, pelos ganhos, e por fazer rir. E modéstia à parte, conseguia muito fazer rir quem eu queria. A tal ponto que no segundo dia de hotel o Roberto Leal e o Gregório Barrios fizeram questão que todas nossas mesas fossem ajuntadas no meio do salão do hotel para que todos pudessem rir do palhaço aqui. E eu caprichava.
  Treinei uma colega, bonita e gostosa, para ser a “ventríloqua” e eu, com os cabelos cheios de vaselina e esticados para trás (naquele tempo eu os tinha em grande quantidade, por incrível que pareça), com um risco de lápis de sobrancelha em cada lado da boca, e um paletó com gravata espalhafatosa, era o boneco da ventríloqua. Sentado no colo dela e imitando o boneco, eu respondia as perguntas que me faziam com voz e trejeitos de boneco mesmo. A turma ria de chorar e várias vezes, ao rirem, espirravam cerveja ou outro líquido um no outro.
   O Gregório Barrios, já muito idoso, ficava tão arroxeado de rir que passei a maneirar quando ele estava por perto. Tinha medo de matar o coitado de tanto rir, ainda mais que havia lido um conto em que isso acontecia mesmo.
   Roberto Leal, o simpático cantor português, fazia questão de levar-nos, a mim e a algumas colegas, aos seus shows e lá íamos nós dançar no fundo do palco. Eu dançando sou um espetáculo à parte. As pessoas ficam me olhando como se quisessem descobrir onde estão minhas muletas. Depois dos shows caíamos na gandaia até alta madrugada.
   Uma madrugada, voltando de um show em Jales, eu vinha dirigindo a Brasília branca de minha colega Márcia, em altíssima velocidade e acompanhado, bem de perto, pelo espetacular Galaxie do Roberto Leal. Na Brasília vínhamos apenas eu o Plínio. No Galaxie, o motorista transportava o Roberto Leal e os mantimentos, ou seja, as meninas que comeríamos logo mais.
   Em alta velocidade fiz uma curva na estrada de terra e dei de cara com uma boiada atravessando a estrada com aquela calma comum ao gado. Homens sempre de sangue frio e acostumados às decisões em fração de segundos, eu e Plínio não pensamos duas vezes antes de colocar os braços na frente da cara e gritar desesperados “Ai meu Deus!”.
   A Brasília da Márcia devia estar acostumada a certas situações. Desgovernada, sem alguém que segurasse seu volante, ela desviou de toda aquela multidão imensamente chifruda e saiu do outro lado da gadaiada sem um único arranhão. Parando quando, por coincidência, um de meus pés pisou no freio.
   O Galaxie do Roberto, mais sisudo, pesadão e grandalhão, não teve a mesma sorte. Mas felizmente ninguém saiu ferido. E as meninas, excitadas com o susto, soltavam faíscas enquanto as acalmávamos na cama logo depois.

   Dois dias depois desse susto, um colega chegou para almoçar e comentou extasiado:
- Canalhada, vim de uma visita agora que vocês não vão acreditar. A mulherzinha é um estouro de mulher. A coisinha mais linda e gostosa que eu já vi na vida, e me atendeu de roupão! Quase que vi tudo que tinha dentro do roupão.
   Fingi desinteresse.
- Aposto que é um bagulho...Vendeu pra ela?
- Que nada. A mulher entende pra cacete de livro e só quer levar papo de intelectual. Começou a falar de uns autores que nunca ouvi falar e acabei me perdendo na argumentação.
- Me dê o endereço dela. Talvez eu tenha mais sorte.
- Vai lá. Por mim...eu não vendi mesmo. Mas tô te avisando, a mulher é super intelectual.
- Tudo bem. Eu contorno a coisa.
   Depois do almoço fui à casa da sumidade, da altamente intelectual. Quando ela abriu a porta e me sorriu, meu mundo caiu, ou melhor, minha adrenalina subiu. Gostosa? Bonita? Deliciosa? Tesãozinho? Lindura? Tudo isso e muito mais seria pouco para descrever aquela coisinha levemente morena, de olhos verdes, cabelinhos escorridos, roupãozinho simples, e jeitinho de anjo caído na Terra por acaso. Fiquei besta olhando aquele pedaço aveludado de mau caminho.
  Felizmente veio em meu socorro um anjo-da-guarda especial que me designaram, que não é lá muito chegado às coisas sagradas e me soprou uma frase no ouvido. Frase que eu repeti sem pensar:
- Moça, não foi à toa que meu colega chegou babando no hotel...
- Que colega?
- Um colega meu que veio lhe oferecer uma coleção da Abril Cultural...
- Ah, aquele bobão que não sabia conversar. O que o senhor deseja?
   Não respondi a pergunta.
- Ele não é um bobão. Ele ficou foi bobo ao te ver. Voltou falando sozinho pelas ruas e chegou ao hotel dizendo que havia encontrado um anjo maravilhoso usando um roupão nesta casa.
   Ela riu, o papo fluiu, eu entrei, o roupão caiu...
   A moça “altamente intelectualizada” tinha a coleção completa, até aquela altura, da Bárbara Cartland,a rainha dos romances água com açúcar e finais felizes, os profundíssimos livros da excelente Agatha Christie, e hoje em dia seria leitora assídua de Paulo Coelho. O que nós dois fizemos no quarto dela foi digno de ilustrações de Carlos Zéfiro.
Vender eu não vendi, mas quem é que estava pensando em negócios naquelas horas?
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 06/08/2007
Reeditado em 01/01/2008
Código do texto: T594895
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