HISTÓRIA DE UMA GUERREIRA IDEALISTA E OBSTINADA
“DONA RITA MENDES PINTO: UMA HISTÓRIA DIGNA DE HOMENAGEM”. É com este epíteto que pretendo iniciar a biografia de uma pessoa notável e que dispensa qualquer citação no GOOGLE para ser e permanecer importante.
Lembremos, como introdução, que a biografia é o gênero literário mais traiçoeiro no que toca à questão de equilíbrio. Grandes biógrafos, como André Maurois, eram extremamente generosos com seus biografados. Outros, como o contemporâneo e brasileiro Ruy Castro, sentem-se mais à vontade passando a limpo a vida de seus biografados. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: nem é preciso “desumanizar” a pessoa sobre quem se escreve através de imposição da heroificação e nem fixar demasiadamente a atenção na humana fragilidade da pessoa que se pretende homenagear.
Sim, a questão aqui é a homenagem. Não se homenageia alguém senão por admiração e respeito. Não se admira alguém que não mereça nossa mais perdurável consideração e não se respeita ninguém senão por grande deferência pessoal. Julguei que estas breves palavras fossem necessárias para justificar os motivos, tanto da biografia que me incumbiram de escrever, quanto da homenagem que se pretende prestar a uma das mais importantes educadoras da história do município de Ubá.
Houve um tempo, não tão longe assim, em que as pessoas de valor se destacavam porque eram mais virtuosas ou porque eram mais devotadas a seus ofícios e não miravam a fama passageira e nem os interesses financeiros. Falo especificamente de uma época que tem como eixo de simetria a metade do século XX – uma década e meia, antes e depois. Uma transição do Brasil rural para o Brasil urbano, do rural caipira e ingênuo para o urbano desadaptado e disperso. Foi nele que floresceu os ideais educadores de nossa homenageada.
A Professora Rita Mendes Pinto, descrita por seus ex-alunos como disciplinadora, obstinada, idealista e sonhadora – suas filhas preferem chamá-la de guerreira – não era ubaense. Aos olhos dos mais ferrenhos nativistas, causa estranheza a pretensão de homenagear quem nasceu fora do ninho e desobedeceu aos cânones da linhagem tradicional. No entanto, o nome da cidade, estampado na certidão de nascimento, não trai, nem condena e nem glorifica uma pessoa. Vale lembrar que também eram outras as origens de muitos ubaenses ilustres: Narciso Michelli, Camilo Soares de Moura, Levindo Coelho, Jacinto de Souza Lima, José Pires da Luz, Leocádia Siqueira e tantos outros. E o que dizer dos pioneiros, Januário Carneiro e Cesário Alvim, ou até mesmo de Guido Marlière? Pois ela também foi pioneira, condição que lhe dá o direito de ser qualquer coisa que se queira, inclusive homenageada.
Dona Rita, como era chamada pelos incontáveis alunos que passaram por sua vida ao longo de seu marcante período de magistério, nasceu em Cataguases em 28 de fevereiro de 1905 e descendia de tronco ilustre. Seu pai, o português José Francisco Mendes, foi Coletor Geral da República em Cataguases e também Procurador da República, que eram posições da mais destacada importância na primeira metade do século XX. Sua mãe, Amélia Martins Mendes, pertencia a uma tradicional e rica família da cidade, proprietária, entre outros bens, da Fazenda da Pedra Redonda. Seu tio e padrinho, Antônio Amaro Martins da Costa, consta como sendo um dos fundadores do tradicional Colégio Cataguases, berço do modernismo mineiro. Com tão distinta genealogia era natural que fosse encaminhada, ao contrário da maioria das moças da época, para um curso adequado, que era o de formação de normalistas.
Voltemos um pouco no tempo quando o Império já declinava e os republicanos se assanhavam. O educador Antônio Herculano de Souza Bandeira Filho tinha viajado à Europa em 1881 com a missão do Ministério do Império de conhecer os jardins-de-infância e produzir estudos a respeito das Escolas Normais de França, Áustria e Alemanha. Menos de um ano depois, retornando ao Rio de Janeiro, entregou dois relatórios de campo sobre o sistema de ensino europeu onde apontava a impossibilidade de transplantar, sem adaptações, os modelos daqueles países. Como resultado surgiram os planos para reformulação da Escola Normal que, colocados em prática, se tornaram a rampa de lançamento das próximas gerações de normalistas brasileiras, incluindo Dona Rita. E o que ele observara na Europa? (1) cada sexo tinha uma escola separada; (2) Escolas Normais não funcionavam à noite; e (3) o programa de ensino na Europa era menos sobrecarregado que o brasileiro na parte científica para não prejudicar a parte literária.
Foi assim que, com o vigoroso apoio de Rui Barbosa, foi gestado um modelo de escola de formação de professoras no Brasil que influenciaria toda a geração da primeira metade do século seguinte. Neste modelo a educação de meninos e meninas era diferenciada. A questão do internato ficou fora do plano, embora Bandeira Filho o defendesse por entender que este método poderia moldar melhor o caráter dos mestres e reforçar sua vocação. Só em 1888 o curso-modelo instituído na Escola Normal no Rio ganhou um regulamento destinado a formar professores para as escolas públicas da instrução primária, funcionando no período diurno.
Em 29 de novembro de 1925, com 21 anos incompletos, Dona Rita recebeu o diploma de normalista do Curso Normal no Colégio Senhora do Carmo, anexo ao Ginásio de Cataguases, devidamente chancelado com assinaturas de duas zelosa Irmãs Maria. Era então uma bela jovem cujos olhos esverdeados pareciam estampar uma grave responsabilidade: a de educar as primeiras gerações de campesinos
O histórico atentado da Rua Tonelero, no Rio de Janeiro, destinado ao frustrado objetivo de assassinato do jornalista Carlos Lacerda, imortalizou na História da cidade uma rua que já era conhecida por sediar o famoso Colégio Sacré-Coeur de Marie, com tradição na França desde sua criação por Padre Gaillac em 1849, e que ali chegara pelas mãos das religiosas portuguesas, Irmã Maria de Aquino, Irmã Santa Fé e Irmã Maria de Assis. E então começa naquele santuário sagrado a saga de Dona Rita como professora, imediatamente depois de colar grau. Aventura única, apaixonada, apaixonante e definitiva. Um pouco mais tarde, Félix Gomes – casado com uma de suas primas – usou de sua influência de homem rico junto à família de Dona Rita para repatriá-la ao seu estado, contratando-a como educadora/preceptora de seus familiares em Ligação. E foi assim que se deu sua chegada a Ubá, encurtando a distância entre ela e os numerosos irmãos, totalizando uma dúzia, gente igualmente vitoriosa nos caminhos da vida: um fez carreira no Banco do Brasil em seus tempos mais gloriosos, outro se tornou Desembargador, outro mais se direcionou para o antigo Instituto Brasileiro do Café e, para não alongar muito, mais um dedicou sua vida ao Instituto do Açúcar e do Álcool.
A família Pinto era igualmente próspera em Ubá Pequeno e outros lugares. Nada menos de 700 alqueires de terra agregavam a propriedade mais imponente. O chefe do clã, primeiramente casado com a Sra. Cornélia e, depois de viúvo, esposando uma cunhada, gerou uma prole de dez filhos. Os homens, dentre eles Altivo, Nelson e Cornélio, foram mandados a Cataguases para estudar. Eram os primeiros tempos do Colégio Cataguases, uma sólida e prestigiada instituição de ensino da Zona da Mata que, guardadas as devidas proporções, poderia ser o equivalente brasileiro da Escola Trinity nos EUA. Mais tarde ali seriam embaladas as canções dos vanguardistas e depois receberia um projeto de Niemeyer e jardins de Burle Marx.
Altivo de Moura Pinto e companhia tiveram então ocasião de conhecer Antônio Amaro Martins da Costa, ou simplesmente Toniquinho depois da intimidade. Convidando-os a visitar sua casa e conhecer sua família, Altivo e Rita tiveram a primeira oportunidade de se aproximar. Para não dizer que o resto é lenda, casaram-se em 1934 e materializaram o longo casamento que se prolongou até além das bodas de ouro e deixaram uma prole respeitável de oito filhos: Henrique, Milton, Nely, Paulo Afonso, Mário Sérgio, Cornélia Rita, Maria José e Maria Amélia. Henrique se tornou comerciário e Milton fez carreira na VASP como mecânico. Era o poderoso ímã chamado Rio de Janeiro reproduzindo o que já fizera com seus tios, atraindo-os para carreiras promissoras na capital da República. E os mais jovens, Paulo Afonso e Mário Sérgio, seguiram a mesma trilha para se tornarem, respectivamente, Fiscal Federal e Administrador de Empresas. Das moças, Nely escolheu ser Assistente Social, também seguindo estrada, e deixando às mais jovens a tarefa de não abandonar os pais.
Sem apressar o passo: ainda antes de surgir a prole, depois da troca de alianças escolheram como moradia uma antiga casa que pertencera a Antônio Pinto Sobrinho, bisavô de Altivo Pinto. Sólida e já quase bicentenária, situada entre a estrada de terra de Ubá Pequeno e um brejo que serve de ante-sala para uma colina arredondada cujas vertentes serviriam às crianças, em breve futuro, para deslizar morro abaixo sobre a concha de folhas de palmeiras. Pois é esta casa o cenário mais caro às memórias de Ubá Pequeno, depositária de esperanças vãs ou bem sucedidas de um alegre relicário chamado Escola General Osório.
Recém-casada, sem filhos e com pouca coisa a fazer, a vocação de professora e o diploma pendurado na parede da sala mobiliada com peças clássicas do século XIX não só incomodavam, como destoavam do ambiente; clamavam pela volta ao ensino que tanto amava. E, por acaso, como se uma coisa puxasse a outra, a oportunidade estava bem ali, num velho paiol de madeira abandonado, onde já havia sido instalada a Escola General Osório sob a regência da Professora Otília, filha do fazendeiro Tonico Balbino. Decidida a se tornar freira, transferiu a batuta para Dona Rita antes de ingressar no convento. E foi assim que começou sua jornada vitoriosa, honrando o ensino primário e a própria história do ensino no município de Ubá.
Carrego comigo uma verdade basilar: a crença de que uma pessoa só faz história se ela deixar como legado algo que transpõe o seu tempo por pelo menos duas gerações. A construção de coisas sólidas enquanto se caminha pelo tempo não é tarefa para pessoas comuns e talvez não o seja nem para os que, cobiçando um altar na posteridade, praticam atos voltados para a auto-edificação e não para desabrochar o instinto de bem servir. Certamente Dona Rita está entre os que não pensavam em si. Era preciso vê-la, circunspecta e sóbria, exalando cuidados maternais com seus alunos. Incansável. Grandes olheiras brotavam sob os olhos carregados de responsabilidade, por vezes beirando a severidade. Para alguns impunha respeito, para muito poucos, admiração. Para a maioria, medo de sua autoridade implacável. Assim era esta mulher infatigável no seu misterioso propósito de contribuir para reduzir o analfabetismo na zona rural de Ubá.
O Governador do Estado de Minas Gerais resolve aposentar, nos termos dos artigos 142, parágrafo 3º, e 148 da Constituição Estadual, RITA MENDES PINTO, MASP. 63.814, no cargo de regente de ensino primário, padrão M-B1, da Escola Singular de Ubá Pequeno, do município de Ubá, lotado na Secretaria de Educação”.
Este singelo e gélido ato, chancelado no Palácio da Liberdade em 30 de setembro de 1965 punha fim definitivo à sua vitoriosa carreira iniciada em 1943. Vinte e dois anos, com dez fileiras de sete alunos que se renovavam a cada ciclo de três anos, totalizando uma estimativa de quase 500 crianças que ela alfabetizou. Quando sobrava tempo, e para ela nunca faltava tempo quando se tratava de educar, ela reunia os adultos da zona rural para ensinar-lhe as primeiras letras em período noturno. E se houvesse crianças interessadas, ela prosseguia o ciclo de aprendizado, avançando os conhecimentos para o nível do quarto ano primário. Parece muito? Não para ela; as moças em véspera de casamento e as mulheres já casadas eram atendidas em variados cursos em que ministrava conhecimentos sobre Culinária, Higiene e Primeiros Socorros. Sabemos disso, por assim dizer, pela metade, pois muitas testemunhas já se perderam pelo tempo afora; a morte é coisa certa e implacável que esconde as verdades que não foram documentadas e até a recuperação da tradição oral fica prejudicada.
O herói clássico é uma figura idealizada: corajoso, bom, destemido e forte. Nem tão forte, nem tão fraco; nem tão corajoso, nem tão covarde – este é o herói moderno, uma pessoa comum que está acima da linha média. Se for considerada esta concepção simplificada do heroísmo, não há dúvidas em se afirmar que Dona Rita foi heroína. Ela não parecia ter os olhos postos no seu presente e nem recuava diante de novos desafios, mesmos que estes fossem propostos por ela mesma. Quando, deixando momentaneamente de lado sua generosa tarefa de ensinar para cumprir a detestável ordem burocrática e preencher uma “Ficha Pessoal” – nome dado a um questionário para historiar a vida profissional dos servidores da área de ensino – ela nos deu a notícia de que era “contratada por tempo indeterminado”, ou seja, sujeita a rescisão intempestiva por qualquer pessoa com nível superior de autoridade.
Ah, sempre tive a curiosidade de esclarecer o que só seria possível se eu tivesse o poder mágico de voltar no tempo e visitar os recantos da casa quase colonial onde ela devia esconder seus bens mais preciosos: os recursos pedagógicos (é assim que se denominariam atualmente) utilizados para o ensino. Pois está lá na sua “Ficha Pessoal” esta tão desejável resposta sobre as “Instituições e atividades que mantém na classe”: Hora de História, Auditório, Jornal, Clube de Leitura e Biblioteca. Apesar de minha boa memória, não me lembro de nada disso. Dona Rita parecia gostar de subverter os ritos. Nada de se prender às modernidades da Escola Nova, porque o que gostava mesmo era da prática de ensino aprendida com as freiras, como se tivesse sido discípula direta de Bandeira Filho: fazer decorar a tabuada, introduzir a criação de texto, fazer as quatro operações com números inteiros e fracionários, extrair a raiz quadrada, ensinar a História do Brasil e a Religião e, por que não dizer, até mesmo o que se chamaria mais tarde de “Moral e Cívica”. Era uma disciplinadora ao estilo Sargento da Tropa, com voz autoritária pedindo silêncio e, ao mesmo tempo, diligente na resolução das atividades que ela impunha aos seus soldadinhos, ou melhor, aos alunos. Hora de recreio, brincar no terreiro, fustigar o cão, pique de esconder na roça de milho próxima ou no canavial que se perdia de vista, catar coquinhos nos cinco pés de jerivás distribuídos em linha na frente da casa centenária. Hora de estudar, mãos na lousa, olhos no quadro negro onde sua mão direita nervosa preenchia longas frases cujos sentidos ela explicava dedicadamente, antecipando o que nós conheceríamos mais tarde como fonética e semântica.
Gosto de pensar, quase subversivamente, que as leis não deviam valer para pessoas muito acima daquela linha mediana onde estão concentrados os que pensam em boa conformidade com o que já está resolvido, exceto para os casos em que seus atos atentem contra a ética. Tenho alguns indicadores para apontá-la como levemente transgressora, capaz de pequenas mentiras para continuar, sem interferências, com sua missão quase evangelizadora de educar, a seu modo, seus rudes alunos, a maioria dos quais saía da sala de aula diretamente para as lavouras trabalhar feito gente grande. Só ela seria capaz de compreender esta diferença entre eles e os alunos de famílias urbanas, para os quais se acredita que todos os modelos de ensino tenham sido construídos naquela época.
 “Como faz quando não tem programa?” e ela responde secamente: “Tenho programa”. “Prepara suas aulas diariamente?”, “Gosta de frequentar reuniões pedagógicas em grupo escolar?” – e ela fingia concordar, com dois “sim”. Duvido muito que ela gostasse das tais “reuniões pedagógicas” e que ela seguisse a cartilha das novas pedagogas. Ela parecia ser daquele tipo de gente, assim como eu, que acredita firmemente que a prática da Pedagogia, Sociologia e Psicologia por maus pedagogos, sociólogos e psicólogos faz parte ativa do atraso cultural e comportamental do brasileiro.
Ela não tinha dons artísticos, mesmo tendo o berço de moça rica numa época onde era elegante uma moça de família tocar piano ou violino. Fico pensando na utilidade de uma informação como esta no histórico daquela mulher guerreira e original, verdadeiramente pioneira. O que ela gostava mesmo, depois de ensinar com a empolgação de uma quase fanática, era de exercitar com os alunos alguns trabalhos manuais – nos quais as filhas Nely e Cornélia Rita estavam sempre presentes como suas auxiliares – e fazer curativos nas perebas dos alunos ou tirar seus bichos de pé; adorava contribuir para a formação religiosa desta sua prole adotiva e entoava maravilhosamente os hinos, Nacional e da Bandeira.
General Osório, assim como Dona Rita, um homem que não cochilava em serviço, era uma figura incorporada por ela como herói nacional e dava aulas de história contando suas vitórias com tal empolgação que parecia até dispensável enaltecê-lo. Ela teria morrido de desgosto se, no seu tempo, o nome da escola tivesse mudado.
Ela tinha a noção mais cristalina do mundo de que só alguns de seus alunos tinham “bons hábitos” econômicos, sociais, morais e intelectuais. E por isso se esforçava tanto para reduzir tais diferenças, aproximando-os de um padrão mínimo que os elevasse na sociedade rural, sem sequer ousar em pensar que o mundo se urbanizaria tão rapidamente e que novas demandas seriam necessárias. Ela tinha aquela visão do mundo rural que lhe era tanto e tão absolutamente cara.
Nos meados da década de 1950 os valores morais pareciam ainda ter sido os mesmos estabelecidos pelos jesuítas desde o início da implantação do cristianismo no Brasil. E ela gostava igualmente da palavra “catequese”. Eu saberia dizer, de cor e salteado, que seu coração vibrava de felicidade, ao seu modo contido de ser, o que ela responderia à pergunta “observa se eles vão à missa, se fazem a Páscoa, se praticam atos de piedade?”. Tinha espaço de uma linha inteira, mas ela gostava de abreviar. E bastava dizer que sim. Parecia inconformada com perguntas tolas, o que denotava sua impaciência com a burocracia. Só usou do espaço a que tinha direito nas respostas quando deixou de lado a economia e quase fez discursos ideológico-sociológicos:
 – Gosta de brincar com seus alunos na hora do recreio ou prefere deixá-los entregues a si mesmos? – “Gosto e observo bem como brincam”.
– Como faz quando seus alunos não têm lápis, cadernos e livros? – “Procuro arranjar-lhes e também há a Caixa Escolar que os fornece”.
Até aqui me baseei em registros e comunicações orais. Isto porque parte de sua trajetória foi coletada de uns poucos documentos que a família juntou ao longo de sua vida e outra parte obtive através de depoimentos de duas de suas filhas, Maria José e Cornélia Rita e de alguns familiares contemporâneos daquela aventura de engatinhar no conhecimento. Pouco ousei falar de memória daquela que foi, dentre os mais de trezentos professores que colecionei em uma longa vida de aprendizado acadêmico, uma constante na minha lista dos cinco mais. Foi só depois disso que deixei minha memória vagar pela metade dos anos cinquenta quando lá estive, com cabelos arrepiados e olhos arregalados de curiosidade, a beber de sua fonte caudalosa e inspiradora. Com ela aprendi o valor da disciplina e o bom aproveitamento das oportunidades. Aos seis anos li a coleção infantil de Monteiro Lobato graças à percepção dela de que eu tinha potencial para apreciar as palavras.
Ali testemunhei suas filhas mais velhas, Nely e Cornélia Rita, engajadas na mesma luta da mãe, ajudando-a em meio a umas oito fileiras de carteiras de madeira maltratada pelo tempo conferindo o que os alunos – turmas mistas do primeiro ao terceiro ano primário – rabiscavam em suas lousas de ardósia ou caderno dos pobres, com lápis entalhados da mesma ardósia e que serenamente rolavam pelo plano inclinado dos tampos, mãos que nos socorriam em nossos erros e nos salvavam de nossas arteiras peraltices de crianças. Dona Rita nos ensinou redação, leitura de textos e ditados – e ainda me lembro com comovente nitidez das gravuras que ela emprestava aos alunos, com o zelo e o ciúme de uma guardiã da responsabilidade e da veneração, para escrever uma descrição. Foi com ela que aprendi a não escrever “vejo uma porteira de madeira com um menino sentado nela”. Foi ela que me despertou para a sensibilidade de ver naquilo mais do que uma porteira: era a companheira do menino desajeitado que sobre ela se sentava todos os dias às três da tarde, sempre no mesmo horário, para ver a menina de seus sonhos. Ela me ensinou a ver o invisível aos olhos.
Cornélia Rita me tomou tabuada e salvou minha mão direita da boca de um enorme cão de pelagem preta reluzente e dentes afiados. Nely me socorreu com a limpeza das feridas e um curativo e me deu uma barra de doce de leite para eu parar de chorar. Dona Rita nos fez “primeiros comungados” pelas mãos de Padre Jésus e nos ensinou todas as orações possíveis para rezar na capelinha construída em frente à Fazenda dos Pintos. Levava um fotógrafo para registrar os alunos em eventos religiosos, convidava o sobrinho Nelson Ned, baixinho de voz grossa e tonitruante que já chegava chegando como se quisesse nos impressionar para um imaginário palco de espetáculos que ele conquistaria mais tarde.
Conheci também a bonança de Seu Altivo, homem de olhar caridoso, andamento reto e lento de quem era, mais do que estava, em comunhão com a natureza serena do lugar. Era eficiente; aquele tipo de eficiência que produz resultados sem estardalhaços, com movimentos mínimos, quase imperceptíveis. E, principalmente, era um homem generoso, um aplicador de injeção sem igual na região, braço direito de médicos, parceiro dos pais que se afligiam com as doenças dos filhos: eram assim os anos cinquenta. Ele aplicou injeção em todos os membros de minha família, cuidou de meu irmão mais velho antes de ele morrer de tétano e ensinou Tio Zezé a aplicar injeção. Consta que chegou a passar noites em claro na casa de Targino, negro miserável que morava num casebre do outro lado do rio, para ajudar a salvar um de seus filhos, também acometido de tétano. O pai chegou a se desenganar e pedir que ele fosse embora, pois considerava que a salvação do filho não chegaria nem por milagre. “Enquanto ele estiver vivo, eu tenho esperança e fico por aqui” – e então o menino escapou da morte. Este foi o parceiro de Dona Rita por quase sessenta anos, ilha de tranquilidade, que recomendava paciência às filhas quando a esposa chegava ao clímax do previsível estresse; ele era o seu complemento mais que perfeito.
Lembro-me muito bem dela. Já de cabelos brancos e levemente ondulados, por vezes desorganizados, e deixando escapar algumas mechas nas laterais da face e pelas orelhas, mas sempre conservando o coque na nuca. Nunca vi figura mais digna. A mesma dignidade que eu veria, anos mais tarde e sem me esquecer dela, jamais, em Francisco de Filippo. A mesma vivacidade, o mesmo acolhimento e aconchego com seus alunos, que ela protegia como se fossem suas crias. Cortava, pacientemente, os papéis de embalagens domésticas, fossem de macarrão, pão, o que quer que fosse, e entregava as tiras aos alunos mais miseráveis em atitude tão emocionantemente franciscana de amor pelos desfavorecidos que chegava a incomodar: por que não havia outras Donas Ritas no mundo? Quando saí de lá, ainda com uns anos pela frente antes de completar idade para entrar no Ginásio, ela me deu sua primeira bronca, como se fosse uma advertência para eu não me dispersar diante de outras oportunidades na vida: “o seu destino é estudar”. Quando me tornei um aprendiz profissional, um legado que vem atravessando toda a minha vida, lembrei-me dela. Ela, então, se tornou um vulto de infinita e absoluta onipresença em mim. Acompanhou-me por todas as partes e lugares. Sempre me senti frágil nas situações em que, por algum ato falho, julguei não estar à altura das expectativas que ela depositou em minhas mãos.
Passou o tempo, ela se aposentou na década de 1960, viu seus filhos partindo, um por um, com um misto de dor e alegria que toda mãe experimenta quando vê que o destino de sua criação é se projetar para o mundo, conquistando as coisas de seu tempo. Até nisto foi corajosa; coragem foi o que não lhe faltou jamais, nem mesmo quando, sentindo já o peso dos anos e a falta de recursos na zona rural, mudou-se para Ubá ao perceber em Altivo Pinto as primeiras manifestações do mal de Parkinson. Ele morreria em 1990 e eu não tenho condições de descrever o que poderia sentir uma pessoa que passou dois terços de um século ao lado de um companheiro.
Perdi o contato com ela e sua família até que um dia, já vendo se fechar o século XX, fui intimado a comparecer em certo endereço em Ubá onde me aguardava uma senhora com seu eterno coque na nuca, com seus cabelos ainda mais brancos e o mesmo olhar que nunca descansava o brilho de inquirir e dar respostas. Fiquei paralisado diante dela. Quedei -me diante daquele ser frágil e iluminado e fiquei sem palavras. Durante muito tempo olhamos fixamente um para o outro, no silêncio mais absoluto. Até que enfim, ela chorou ligeiramente, depois recuperou sua eterna postura de mulher forte e pediu que lhe trouxessem uma foto dela, a mais recente. Pegou uma caneta esferográfica e, sem tremer a mão direita, escreveu uma linda dedicatória. Já era quase centenária.
Ela morreu, como acontece com todos os mortais. Nós, os sobreviventes a ela, achamos que não, já que a morte é a tragédia humana da separação. Mas, aí surge outra incongruência: ela não se separou de nós porque ainda se encontra presente. Ela não nos legou escrito algum, porque tinha muita pressa de converter sua energia e ideias em ações objetivas. Nem memórias, diários, projetos de livros – coisa tão pródiga em outra grande educadora ubaense, Dona Clotilde Vieira. Nada; nem mesmo fundou externatos, como outras duas gigantes – Dona Maria Machado e Dona Aristolina Vidigal. Toma-se como exceção umas poucas palavras que poderiam ser consideradas como a mais perfeita síntese biográfica que se poderia fazer dela:
Iniciei meu magistério na Escola Ubá Pequeno em 1º de abril de 1943 como contratada pela Prefeitura. Em 1949 fui incluída no (cargo) de professora, de acordo com o convênio da Prefeitura e o Estado; passei a perceber para o Estado; em maio de 1959, ainda com o convênio da Prefeitura e o Estado passei definitivamente (para o) Estado, como contratada. Há 19 anos exerço meu magistério como regente, sem nunca ter tirado uma licença ou mesmo gozado de férias prêmios”.
Quando o “Minas Gerais” (Diário do Executivo) publicou sua aposentadoria em abril de 1965, a sua tão amada “Escola General Osório” desde o ano de 1943, já era chamada oficialmente de E. C. de Ubá Pequeno, mas não para ela e nem para nós, orgulhosos daquele uniforme que nem todos os alunos tinham condições de comprar.
E agora, uma década e meia depois que ela se foi, muitos de nós gostaríamos de rever os conceitos que fizemos de sua trajetória de vida. Os humanos têm, por convenção, dois pontos perfeitamente distinguíveis na linha do tempo: os dias de nascimento e morte. Dona Rita teve outros dois: 1943 e 1965, período que marcou sua atividade como professora. O que veio antes do primeiro marco pode ser tomado como formação e preparação, onde ela amadureceu a vocação e gerou seus filhos. O que veio depois se toma como a serenidade da missão cumprida, onde, já madura, alcançou até mesmo a paciência que parece não ter tido antes. Esperou, pacificamente, pelo documento oficial de aposentadoria que, concedida em 1965, ainda não tinha sido oficializado em 1980. Então recorreu ao Deputado Narciso Michelli que, aproveitando o original do ofício, despachou com o mesmo modo econômico de Dona Rita: “buscar amanhã”.
Portanto, há duas Donas Ritas, a do miolo e a das margens. Fiquemos com a do meio para prestar esta singela homenagem a uma das mais brilhantes educadoras de Ubá no século XX.