IRMÃ LÚCIA , VIDENTE DE FÁTIMA

A LUZ

Ao romper da aurora fria, três freiras saíram do convento e aproximaram-se do carro preto que as esperava.A reverenda madre pegou-lhe nas mãos uma última vez, sabendo que nunca mais a veria nesta vida e despediu-se com os olhos toldados ao de leve.As outras duas irmãs entraram e o motorista arrancou naquela manhã cinzenta de 1946.

Ela recostou-se no assento e recordou numa passagem fugaz a sua extraordinária história e como ela tinha condicionado o seu percurso.

O caminho fez-se entre uma estrada ladeada de árvores e o condutor queria atravessar a fronteira com brevidade antes do dia raiar.

Ela reviu e reviu-se num filme veloz…a serra, o pastoreio, aquele dia em que tudo aconteceu, a voragem dos acontecimentos e eles, os seus companheiros que partiram sem se poderem despedir, deixando-a só com a responsabilidade do mundo nos ombros.E dos dias dolorosos em que lhe passou pela mente furar a regra, evadir-se, desistir, revoltar-se e afirmar o seu direito a uma vida normal e igual a tantas outras como os seus sentidos e o seu corpo requeriam.

A Igreja desejava-a mantê-la bem guardada, longe dos olhares indiscretos que ansiavam por saber do seu paradeiro talvez para correrem atrás dela, a perseguirem interminavelmente dispostos a arrancar-lhe nem que fosse um cabelo que servisse de relíquia.

Na fronteira, a Guarda já estava avisada e a paragem demorou o mínimo.Um agente bem informado tentou olhar para dentro do automóvel mas não sabia qual das duas freiras seria ela e recuou envergonhado, refreando a curiosidade.

A viagem prosseguiu sem mais paragens e foram diretos a Coimbra onde eram esperados.Chegaram discretamente, mantendo o segredo bem guardado e ela só sabia que as instâncias haviam decidido o seu ingresso numa ordem ainda mais rígida que afastasse o perigo de poder ser invadida por jornalistas ou simples curiosos.

Terá pedido apenas para se despedir da família que ela já não via desde há muito e a autorização para visitar a localidade em que uma luz do Além tinha marcado o seu destino.

E incógnita e de fugida um dia ela voltou aos locais e pontos de partida e tiraram-lhe várias fotografias com o hábito da antiga Ordem.Teria trinta e oito anos e um semblante triste como as chagas do Senhor e um aspeto nervoso como o medo.Pasmou perante o desenvolvimento do lugar agora uma vila onde à volta da pequena capela se tinha construído um terraço enorme e onde abundavam já lojas que vendiam artigos e recordações religiosas desde terços a fotografias deles os três, crianças.

A paz pairava no local e avistou ao longe dezenas de peregrinos que ali vinham orar e pedir benesses à imagem consagrada.

Ela achou tudo aquilo ainda maior do que a sua imaginação podia supôr quando em Espanha lhe contavam sobre a criação do santuário.

Passou-se algum tempo.

Em 31 de Maio de 1949 no Convento das Irmãs Carmelitas descalças do Carmelo de Coimbra em Portugal foi assinalada a sua morte para o mundo e o seu voto no Carmo consumado.

O Segredo.As hierarquias.Os Bispos. As revelações.As profecias.O mundo em estilhaços.O pesadelo.

- A minha vida é como a vassoura atrás da porta que após ter servido a sua função se arruma de novo ou se deita fora.De pouco ou quase nada vale – dissera e escrevera ela nas “Memórias”.

O Concílo do Vaticano II.As conspirações.os Illuminati.Os anti-papas.O anti-Cristo.A cadeira vazia.A teoria da conspiração.Os desacatos.

Criar-se-ia uma fantasia, uma polémica, uma controvérsia internacional sobre a sua imagem antes e depois de lhe extraírem os dentes e lhe colocarem uma prótese.Sobretudo o antes e depois no que toca ao comportamento de uma religiosa na mais severa das clausuras e que carregava com um tema apocalíptico de aviso à humanidade para arrepiar do caminho de perdição e pecado em que a ambição e o ódio satânico pareciam ter vencido e tomado conta das almas.

Em 1967 o mundo pôs os olhos na celebração do Cinquentenário e ela viu-se convocada para participar nas cerimónias.Pessoas de toda a parte viajaram até Portugal e afluíram ao Altar do Mundo sem distinção de raça, idade, fortuna ou côr unidas somente pelo mesmo Credo.A Mensagem triunfara e a multidão vinha tentar redimir os seus pecados e rezar pela salvação do mundo.

O astuto Cardeal Montini eleito Sumo Pontífice e conhecido como o Papa Peregrino soubera bem compreender a fé que movia montanhas e acedera em presidir, num espectáculo com as câmaras de televisão apontadas à tribuna com a basílica em fundo.Foi ele Sua Santidade quem lhe pegou na mão e fê-la encarar as massas , a única vidente viva.

Ela terá visto a cruz e relembrado tudo…a Senhora, a refulgência, o Sol, o milagre, a rampa, as portas que se abrem e que fecham…a luz.

O povo acampado à volta bebera vinho e deitara-se ao relento, os homens arrimaram-se às mulheres e o comércio de artigos e restauração excedeu todas as expectativas.Notaram-se episódios menos próprios nas casas de banho à noite e tudo isso porque os homens no geral não passavam de pobres, fracos e tolos animais indignos.

Mas as velas iluminaram o recinto, os cânticos em várias linguas elevaram-se numa acústica quase pefeita e as promessas cumpridas de joelhos testemunharam o efeito da intensa fé posta na oração.A procissão das velas atrairia os turistas desde o início, no adeus à Virgem os corações disparavam e ela apercebeu-se enfim que tinha cumprido o seu papel.

“Na eternidade, o céu”,a esperança no triunfo do Bem quando as convulsões do mundo continuam a agitar a terra e o Papa do início do novo milénio constataria que “Já entrámos na terceira guerra mundial”.

Ela quase a atingir um século de vida esperou serenamente pela Morte, confortada nos últimos momentos que não tinha sido em vão porque a Humanidade desesperava por uma réstea,talvez um fio de esperança.

Dissera a uma noviça, perto do fim.

- Os meus pais chamaram-me Lúcia. Que significa “mulher que nasceu ao amanhecer”.A luz que emerge pela manhã e que é sinónimo de alegria, prosperidade e esperança.Boas novas para quem adquirisse o nome.Dizem que a personalidade de Lúcia é agradável e optimista.Talvez eu tenha sido tudo isso.Ainda bem.Alegro-me… agora que a minha hora chegou!