O Aleijadinho, artigo da Revista Kósmos de 1904. Transcrição do artigo de Gustavo Penna, para a Revista Kósmos,  Agosto de 1904, número 8.
NOTA:  O artigo original não contém nenhuma ilustração.
 
O Aleijadinho

Se neste país, donde o patriotismo parece desertar, se erguesse um dia o panthéon destinado, destinado a glorificar na morte aqueles que em vida enobreceram a nossa terra, o cenotáfio  de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, iria ocupar neste templo augusto, um lugar de honra, igual ao de Miguel Ângelo no Panthéon de Itália, em Florença.

O escultor mineiro, morto há noventa anos, tinha a misantropia ríspida de Beethoven, o temperamento assomado de Leonardo Da Vinci.  Poderia dizer-se que aquelas mãos deformadas e engrunhidas pela doença, tendo alguns dedos cortados  a golpes de formão em momento de desespero indômito, de dores crudelíssimas, haviam tomado aos poucos forma agressiva de garra de leão.

“Era pardo escuro,”  relata Rodrigo Bretas,  no Correio Oficial de Minas, em 1858.  “Tinha a voz forte, a fala arrebatada, o gênio agastado; a estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurado, o rosto e a cabeça redondos, e esta volumosa, o cabelo preto e anelado, o da barba cerrado e basto, a testa larga, o nariz regular, beiços grossos, orelhas grandes, o pescoço curto.

Sabia ler e escrever e não consta que houvesse frequentado alguma outra aula  além da de primeiras letras, embora alguem julgue provavel que tenha frequentado a de latim.

De 1777 começaram as moléstias a atacá-lo fortemente.  Pretendem uns que ele sofrera o mal epidêmico que, sob o nome de Zamparina, pouco antes havia grassado nessa província , e cujos resquícios, quando o doente não sucumbia, eram quase infalíveis deformidades e paralisias, que nele se havia complicado o humor gálico com o escorbútico.

O certo é que Antônio Francisco perdeu todos os dedos dos pés, do que resultou não poder andar senão de joelhos; os das mãos atrofiaram-se e curvaram, e mesmo chegaram a cair, restando-lhe somente, e ainda quase sem movimento, os polegares e os índices.

As fortíssimas dores que de contínuo sofria nos dedos e a acrimônia de seu humor colérico o levaram por vezes ao excesso de cortá-los ele próprio, servindo-se do formão com que trabalhava!

As pálpebras inflamaram-se e permanecendo neste estado, ofereciam à vista sua parte interior, perdeu quase todos os dentes, a boca entortou-se, como sucede frequentemente ao estuporado, o queixo e o lábio inferior abateram-se um pouco; assim o olhar do infeliz adquiriu uma expressão sinistra e de ferocidade, que chegava mesmo a assustar quem quer que o encarasse inopinadamente.

Esta circunstância e a tortura da boca o tornavam de um aspecto asqueroso e medonho.“

 Para o Aleijadinho, o louvor era tomado como ironia ou escárneo.  A fito de esquivar-se à vista de todos, ia de madrugada para o serviço, a cavalo, trajando um amplo capote com que ocultava o semblante, e somente regressava à casa depois de noite fechada.
Ainda mesmo quando trabalhava no interior das igrejas, costumava ocultar-se dentro de um toldo.  Se algum curioso, — fosse obscuro popular, ou um general como D. Bernardo de Lorena, muito alto e poderoso governador, — ia vê-lo trabalhar, acompanhando por uns instantes o esculpir de uma estátua, que emergia lentamente de um bloco de pedra, o escopro do Aleijadinho, fazia esfarinhar violentamente tamanha chuva de lascas, que o importuno não se demorava, saraivado por aquela chuva de pedriscos e de pó.

E foi na solidão e no mesto silêncio das sacristias dos nossos templos, profusamente recamadas de ouro como as igrejas do oriente, naquela atmosfera impregnada de misticismo, que o escultor mineiro fazia surgirem da pedra bruta as notáveis concepções do seu gênio, ora a estátua que seria de outro mérito se fosse talhada no mármore de Carrara, ora esses lavores finos, as folhagens, os rendilhados e as laçarias que se podem chamar a ourivesaria de granito.

O Aleijadinho viveu numa época e num meio inteiramente hostil à arte, quando o governo português havia proibido o uso do cinzel, “para se não dilapidarem os quintos de Sua Majestade.”  Nenhum dos elementos de educação artística, de desenvolvimento do gosto, de ilustração, vulgarizados depois pela imprensa, pela fotografia, pela gravura e pela modelagem existia.  Apenas algumas estampas de detestável impressão e de risível ingenuidade, intercaladas nos alfarrábios contando a vida e os milagres do santo.

Imagine-se o que nos poderia legar o artista mineiro se vivesse nos nossos tempos, e lhe fosse dado contemplar o mosteiro dos Jerônimos, enorme flor de pedra, a catedral de São Marcos em Veneza, o duomo de Milão, as maravilhas de Roma, as suntuosidades do Louvre!

Poucos trabalhos tenho visto do Aleijadinho, dos que opulentam muitos templos da arte mais antiga de Minas.

Cobertos já da patina formada pelo tempo, naquele ambiente de vetustez e de melancólico abandono que têm as nossas velhas igrejas quase todas, esses trabalhos apresentam nas linhas gerais a majestade harmônica que é a mais nobre qualidade da escultura.

Não têm, é inquestionável, a graça feminil e a eloquência das estátuas de Canova, que se poderia denominar o Lamartine do mármore. Não são criações perfeitas e que, como o Moisés e o grupo da Pietá, de Miguel Ângelo, possam se considerar obras primas do cinzel.  Mas, inegavelmente, denotam a inspiração de um artista genial esses variados trabalhos de escultura, cavados no granito bruto por mãos de um aleijado, sem nenhuma educação artística, mal pago, e que viveu num período tão ingrato para a arte.

O Aleijadinho foi também arquiteto e ainda nesse ponto encontro-lhe alguns traços de semelhança com o arrojado criador do zimbório da basílica de São Pedro e da galeria Dei Lanzi, de Florença.  Dizer que um homem semelha a outro é coisa muito diversa do que considerá-lo igual, — seja dito a puridade
— .
Em meio do estilo severo e pesado das construções religiosas do século último passado, nota-se nas que foram delineadas por ele, uma tendência para audaciosas inovações, imprimindo-se mais elegância no traço e mais harmonia no conjunto.

Em torno do sombrio burilador de pedra a fama cresceu com a lenda.
Ainda hoje há quem suponha um ente misterioso, que encerrava-se invisível durante meses, entregue dia e noite ao trabalho, sem um ruído de martelo, até que a muda oficina, aberta um dia, mostrava a obra acabada.  O escultor desaparecera misteriosamente, sem saber sequer o preço do seu trabalho.
Antônio Lisboa, o Aleijadinho, há de permanecer na história de Minas enquanto houver uma pedra em que ele esculpiu um trabalho de gênio com as suas mãos de mártir.

A página desta brilhante revista em que Artur Azevedo tratou desse escultor, animou-me a trazer também para aqui este rápido estudo, feito há tempos num jornal provinciano.

Sei que brevemente será erguida aqui na magnífica praça da Liberdade a herma de Bernardo Guimarães, e tenho motivos para crer que nessa Puerta del Sol da futura Madri brasileira outros monumentos hão de rememorar os grandes mineiros do século XIX.

Não seria então motivo de reparo se ao lado de Teófilo Ottoni, com o perfil inspirado e enérgico de Gambetta, de Andrade Neves, o Murat brasileiro, de Aureliano Lessa, o nosso A. de Musset, de Bernardo de Vasconcellos, de Paraná, com o seu largo semblante austero, de Bernardo Mascarenhas, o criador da indústria têxtil de Minas, do general Carneiro, de Christiano e outros, fosse  levantado um dia também o busto do sombrio artista, atormentado gênio, impetuoso com os grandes e que procurava esquecer os suplícios do espírito e os tormentos do corpo no trabalho torturado de arrancar ao bloco de cantaria as admiráveis criações de sua inspiração.
Emergindo da aveludada relva a coluna branca, encimada pelo busto do artista, na paz e no aconchego das árvores amigas, aquele singelo monumento seria o mais nobre tributo de piedade ao mártir e de admiração ao gênio.

GUSTAVO PENNA
Belo Horizonte, Junho de 1904
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 06/07/2020
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