CARTAS DA GUERRA Nº 3 - PARTE INTEGRANTE DO ROTEIRO DE FÚRIA E REDENÇÃO

Querido Benjamim, Catarina e Helena

Desculpem-me a demora, mas muita coisa aconteceu, vou tentar contar nessa longa carta, que vou escrevendo nos meus momentos de folga. Depois de tanto tempo, acho que até perdi a conta, vamos embarcar. Durante de quase um ano de treinamento, quase chegamos a desanimar e perdendo a esperança de entrar em combate. Mas, quando a notícia chegou, ficamos eufóricos e nossa energia voltou com força total. Seguimos de trem para o Rio de Janeiro, cerca de 150 homens. Ainda restam muitos e muitos já foram. No total são 25.394 brasileiros seguindo para a Itália. Perdoe-me se digo a verdade, mas não penso mais na estância, parece-me que a vida que levei aí faz parte de um passado distante, quase irreal.

O oceano é o mesmo em que meu pai veio, infinito e assustador, esse Atlântico de tantas travessias. Um navio americano nos esperava, atracado no porto. Francisco reclama de enjoos antes mesmo de pôr os pés no convés. A tropa subiu em fila indiana, parei um pouco para ver os rostos, mas tudo o que notei foi um bando de jovens inseguros e inexperientes, o pavor estampado em todas as faces, um medo incontido, disfarçado por sorrisos frios e amarelos.As botas pesam, os fuzis também e o meu escorrega do ombro. Tenho de erguê-lo a todo instante, antes que o comandante veja.Francisco reclama o tempo todo, dizendo que sente medo, que não gosta de violência. Outro dia perdi a paciência e fui duro. Se no navio já se sente assim, como será quando estivermos combatendo de verdade? Penso nos parentes que devo ter na Polônia, pois só se fala nos campos de concentração. Talvez estejam presos ou mortos, e rezo pela última alternativa, pois ouço coisas horríveis, inimagináveis sobre Dachau, Auschiwitz e Treblinka.

Quando amanheceu, o porto de Nápoles surgiu no horizonte róseo da Itália. Senti um arrepio na pele, talvez de emoção por estar na Europa, talvez por medo, não sei dizer. Benjamim, o que vi me deu uma idéia do que causa uma guerra. Os iludidos se decepcionaram. Não pudemos desembarcar, ficamos no convés. Nunca vi tamanha pobreza, prédios semi destruídos, ruas sujas e escombros por toda parte. Ratos enormes passeiam em plena luz do dia. A população faminta se aglomera pelas calçadas e em frente ao porto, pedindo cigarros, comida e dinheiro aos soldados aliados. Comenta-se que meninas de dez, doze anos se prostituem por um pedaço de presunto ou um naco de carne. Artigos raros só se consegue por contrabando.

Ando pensando em mim, sempre me disseram que era dono de uma personalidade doce e flexível, porém com o que tenho visto ultimamente, não mais me reconheço, às vezes tenho piedade, outras asco. Vou contar um fato que presenciei outro dia, para que tenhas uma idéia do que se passa aqui. Estávamos no convés e um colega jogou o toco do cigarro no ponto, numa disputa para ver quem atirava mais longe. Acreditas que mais de dez homens pularam sobre aquela migalha e chegaram a brigar, entre socos e pontapés? Acabariam se matando se não fossem apartados. Uma guimba de cigarro, por aqui, vale mais que uma vida. Isso é a guerra.

Alguns dias depois embarcamos numa barcaça, quinhentos homens, rumo a Livorno, onde recebemos instruções por mais quinze dias. A cidade não é diferente de Nápoles, a destruição está em todos os lugares, os famintos também, as crianças prostitutas e o vazio nos olhos, o homem não mais acredita na própria espécie. Sinto que isso ficará gravado em minha mente por toda a vida, nunca mais serei o garoto doce que todos diziam, nunca mais serei o mesmo homem. O único elo que me mantém são as cartas que te escrevo e recebo. É a única ligação com esse universo que deixei para trás, que me lembro como um sonho vago e distante.

Não sei quando volto a escrever.

Saudades evasivas.

Rafael.

OBS: Parte integrante do roteiro "Fúria e Redenção", escrito por José Donizetti Morbidelli, uma adaptação da obra homônima de Ditinha Lima.

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JDM

José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 21/02/2006
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T114507
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