CARTAS DA GUERRA Nº 6 - PARTE INTEGRANTE DO ROTEIRO DE FÚRIA E REDENÇÃO

Benjamim,

Essa é a ultima carta que te escrevo dessa terra. Voltarei para casa em breve, talvez um pouco diferente, nunca mais andarei sem coxear, mas estou vivo, o que, infelizmente, não posso dizer do meu bravo e querido amigo Francisco. O que restou dele embarcou para o Brasil há poucos dias. Vi morrerem centenas de homens, porém a morte do meu amigo me doeu nas entranhas, no mais fundo do meu ser. Já faz um mês e só agora saí do estado de choque em que fiquei, e me recupero lentamente dos meus ferimentos, mas não sem lágrimas que escorrem e borram o papel.

Depois da conquista de Monte Castelo, passamos um tempo relativamente calmo. A temperatura começou a esquentar, com a primavera dando sinais de vida nos campos, indiferente aos homens que lutam e derramam seu sangue sobre as hastes de capim, tímidas depois do rigoroso inverno europeu. Primavera teimosa essa, uma admirável teimosia em se manter viva diante dos homens, que com suas armas e arrogância tentam interferir no ciclo da natureza milenar. Nesse tempo, outras tropas da FEB tomaram S. Maria Villiana, Castelnuevo. Nossa próxima batalha foi Montese, a pior de todas, a mais sangrenta. Combatemos quatro dias e quatro noites sob bombardeios violentos. Atuamos em movimentos sincronizados, já que Montese era considerado um dos mais fortes bastiões da linha de defesa alemã: a Gengis-cã.

Percorremos terreno profusamente minado, pois era impossível desativar todas as minas, sob duelo de artilharia, morteiros e fogos da infantaria. Contamos com o apoio de blindados americanos. Vi meus companheiros morrendo as dúzias, tombando sob as metralhadoras alemãs, mas Francisco estava comigo, e nós não morreríamos. Escureceu e o fogo continuou, clareando o céu como noites de tempestade, aumentando as nossas baixas. Fizemos 127 prisioneiros no dia 14. O posto de comando era o alvo dos inimigos, mas estávamos vencendo. Eu via, de longe, o posto de saúde, onde os médicos e enfermeiros prestavam socorro aos feridos, indiferentes ao perigo que os rodeava.

Estávamos profundamente estressados naquele em que seria o último dia da batalha. E, apesar de recebermos reforços, sofremos muitas baixas. Benjamim, o soldado não é um homem. É só um número e quando tomba é considerado uma baixa.

O que vou lhe contar agora me é difícil, mas vou fazê-lo, quem sabe assim consigo fazer com que doa menos. Os alemães descobriram como desativávamos suas bombas e armaram as antitanque com um dispositivo que a detonava ao ser desatarraxada a porca. Francisco não sabia do novo invento, e eu só fiquei sabendo aqui no hospital. Permanecemos à esquerda do batalhão, procurando detectar uma dessas bombas. Ao sinal do detector, ele me disse que queria que eu me afastasse, que gostaria de fazer o serviço sozinho ao menos daquela vez. Protestei dizendo que não era preciso provar nada a ninguém, protesto que ele recebeu com teimosia, dizendo que os outros o chamavam de covarde e afeminado. Ao encará-lo, compreendi que era de suma importância essa tarefa e tinha de deixá-lo viver aquele momento muito particular. Afastei-me rastejando em direção aos outros e fiquei olhando, com um nó nas tripas. O corpo magro do quase menino se balançava ao desatarraxar a “garota”. Ainda ajoelhado, ele me olhou, respondi com um aceno. Eu mantinha meus olhos nele, nem ouvia o troar dos canhões. Daí de repente, num segundo ele estava ali, no outro não estava mais. Meu próprio grito me despertou, um berro horrível abafado pelo barulho da explosão. Uma massa vermelha foi jogada para o ar, misturada a pedaços de carne que caíram como chuva, um dedo, uma mecha de cabelo louro e um braço com os dedos em forma de garra. Não sei o que senti, mergulhei num redemoinho de náusea, meu estômago se contorceu. Não chorei meu amigo naquele dia, não havia tempo, o fogo cruzava as nossas cabeças. Ergui meu fuzil, a baioneta brilhou e disparei sem nada ver. Nem sei quantos matei, nem se realmente matei, minhas lágrimas me confundiam a vista. Tudo o que sentia era dor, que se transformou em ódio, um ódio cego que me amortecia os nervos, tornando-me num animal com sede de sangue. Só sei que quando amanheceu estava caído, mas consciente. Virei o rosto e vi os corpos, depois fiquei sabendo que foram 426 baixas, entre mortos, feridos e extraviados. Os padioleiros chegaram para conduzir os feridos aos hospitais e os mortos para os necrotérios, onde seriam identificados e enviados para a terra natal, com medalhas de honra pelo excelente desempenho no campo. Dois deles se aproximaram de mim e me carregaram, eu quis dizer que estava bem, mas ao sentir o movimento a perna esquerda me doeu terrivelmente.

A dor fez com que me lembrasse de algo ruim. Minha mente vagava em lembranças sem nexo, partículas de recordações, um alemão que caiu e me encarou com olhos súplices, como se implorasse para não ser morto. A dúvida daquela hora, uma fração de segundos me assaltou: matar à queima roupa ou me deixar matar. O rosto me veio claro à mente, os olhos cinzentos, cabelos grudados pelo suor, a cara de menino perdido. Não queria matá-lo, ficamos nos encarando por alguns segundos, até que eu fiz menção de me mexer para carregar o fuzil e continuar a atirar. Queria simplesmente deixá-lo ali, ao meu lado, mais tarde pensaria no que fazer. Talvez o levasse comigo, como prisioneiro, ou então o deixasse ir embora. Benjamim, as mentes se confundem numa batalha, o soldado vê inimigos em todos os rostos, e ele confundiu o meu ges-to, achando que sacava da arma para matá-lo. No desespero sacou de um revólver que trazia no cinto e atirou na minha perna. Acho que também não queria me matar, senão teria feito. Mirou no meu joelho, ouvi o som, mas nada senti, apenas o impacto do projétil penetrando no osso, na rótula. Um pedaço de cartilagem muito branco saltou para fora, acompanhado por uma lasca de osso pontiagudo, minha perna assumiu uma posição grotesca. Virei-me para trás. Tentei me arrastar para longe dali, quando vi que o soldadinho mirava outra vez o alto da minha coxa. Então me lembrei de Francisco, dos pedaços do meu amigo caindo como chuva, enfureci-me e disparei na testa dele, um tiro certeiro que o fez se contorcer e cair imediatamente. Também senti o chão fugindo sob meus pés, caí e fiquei quieto, respirando fundo. É só o que me lembro. Entrei num branco profundo, só senti alívio. Despertei no hospital, e para surpresa ainda conservava minha perna, reta e sem a rótula. Não sei o que fizeram, mas foi um bom trabalho, diante das circunstâncias.

Estou voltando para casa.

Rafael.

OBS: Parte integrante do roteiro "Fúria e Redenção", escrito por José Donizetti Morbidelli, uma adaptação da obra homônima de Ditinha Lima.

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JDM

José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 22/02/2006
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T114884
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