Pastoral Carcerária - II

A presente carta foi enviada na época a diversas autoridades (talvez mais de trinta de diversos segmentos de nossa comunidade) cujos nomes, cargos e funções aqui omito porque compreendo que não vem ao caso publicá-los. Interessam o conteúdo e o teor, e isso é o que segue.

Ourinhos, 01 de fevereiro de 2004.

Hoje, às 7h 30min, a santa missa da catedral do Senhor Bom Jesus foi celebrada como de costume se faz aos domingos, mas uma das intenções era orar pelos presidiários e a pastoral carcerária esteve presente através de seus membros.

De lá seguimos, os da pastoral carcerária, para a visita dominical à cadeia. O Sr. Gilberto de Oliveira não pôde comparecer, pois ainda não havia regressado de Bauru, para onde se dirigira para a sua cirurgia. Membro muito assíduo e atuante, deveria ele ser substituído por nós outros, nem tão assíduos e atuantes. Levamos folhetos de missa, livretos de liturgia, apostilas ( para um rapaz que nos havia solicitado material mais específico), a nossa palavra de esperança e a de despedida, desejando a todos uma semana boa tanto quanto possível.

Como no domingo passado, o cheiro das celas, das roupas úmidas secando nos corredores e dos próprios presos ficou-me nas narinas. Não havia sujeira, mas faltava o cheiro do sabão, do material de limpeza a que estamos acostumados cá fora e também o da roupa seca ao sol. Essas impressões e outras vão ficar em mim por todo o dia, eu sei, e fazem-me uma profunda cobrança: o que aquilo tudo tem a ver comigo, com nós todos, com a nossa comunidade de Ourinhos?

Soubemos que um rapaz dormira do lado de fora da cela: o que tem ferida nas pernas, de onde, literalmente, saem bichos que comem suas carnes( serão os mesmos vermes que nos comem mortos?). Ele não nos disse palavra, só nos olhou e preferimos instintivamente não estender-lhe a mão. O que ele tem a ver conosco? A pedido do carcereiro, Sebastião, Orlando e ‘seu’ Toninho voltaram para ver-lhe as feridas; eu tive medo de passar mal no corredor e não fui. Um preso de outras celas pedia remédios para si e para os outros e para aquele em especial. Disse-nos, o da cela, que está em Ourinhos desde novembro, mas parece-lhe que o médico comparece a cada mês, mês e meio, que ele próprio tem bronquite, que não sabiam desta vez onde estavam as receitas, e faltavam medicamentos. Falando com os da cela 1, conseguimos as receitas. Sebastião vai ver se consegue um tempo e os remédios. Já em visita anterior, um detento, quando ouvira dizer que Sebastião era dentista, alegrou-se e pediu insistentemente que este lhe extraísse um dente, que já não suportava a dor; todavia, qualquer procedimento ali deveria ser da responsabilidade do dentista autorizado pela Secretaria da Saúde; além disso, Sebastião não contaria, àquela hora, com material esterilizado nem com condições apropriadas para proceder à conduta mais adequada ao caso.

Fiquei pensando em tudo o que vi hoje, em tudo o que já vi outras vezes e algumas idéias vão-me ficando mais claras. Além das condições precárias em que vivem e de lhes faltarem instruções e orientação de toda ordem, os presos vêem o que querem ver na televisão, e a nossa TV nem sempre é boa, nem sempre tem o intuito de formar cidadãos, muito menos, de reeducar presidiários e então eles vão perdendo todo o pudor, a vergonha, a dignidade que ainda lhes restam. Como educadora, penso que outros canais com outras programações, deveriam chegar aos encarcerados: Tv Cultura, TV Senado, Canção Nova, Rede Vida, etc..

Educação e religião, senhores. O que pode um homem sem religião e sem formação? No domingo passado soube pelo Sr. Gilberto, perante uma das celas, talvez a 5, que naquela cela rezam e fazem orações diárias comuns, e isso nos anima. Entretanto o que são nossas palavras, livrinhos, folhetos dominicais perante a programação perniciosa de certas emissoras agindo incessantemente sobre cabeças e corpos desocupados de pensamentos bons e de trabalho? O que a nossa cadeia está fazendo para reeducar nossos detentos? Sairão eles melhores do que entraram?

O sistema prisional no Brasil é falho. Haverá no mundo alguma cadeia, algum sistema adequado e funcional que nos possa servir de exemplo? Se não houver modelos, ou sendo poucos, saberemos nós criar o nosso próprio sistema? Apesar da nossa falta de verba, da falta de apoio e incentivo de toda ordem, da falta de tempo, de não sermos pagos por isso ou reconhecidos, do risco de sermos criticados ou postos de lado pelos nossos pares conforme a causa que defendermos, de não sermos sempre compreendidos pela sociedade, temos _ os cidadãos todos_ algo a fazer?

Lembro-me das palavras de uma assistente social, vinda de São Paulo para uma palestra na nossa Câmara Municipal, por ocasião da criação de um órgão ou entidade que iria dar assistência aos menores abandonados. Ouso parafrasear-lhe a fala, pensando, desta vez, na realidade de nossos detentos: Vamos fazer alguma coisa por eles ou então esperemos para ver o que eles podem fazer conosco.

Hoje, primeiro de setembro de 2004, são 128 detentos nas celas da Cadeia de Ourinhos. São 15, 16, 17 detentos em algumas celas. Em algumas outras há menos. São nove celas. Um preso fica fora das celas e trabalha na limpeza. Vi-os por volta das nove horas, amontoados nas celas, colchonetes estendidos até à porta dos banheiros. Alguns despertos, outros ainda dormindo. Penso nas suas noites mal-dormidas e me lembro de um médico ter dito, certa vez, a mim mesma, por causa de noites de insônia, que era preciso dormir bem. Que a pessoa que não dorme bem noites seguidas pode começar a apresentar sintomas de esquizofrenia. Penso neles, em suas noites mal-dormidas, nenhuma ocupação constante para lhes cansar o corpo, quase nada a lhes alimentar o espírito, quase 18 horas diárias para ver má programação, quase todo o tempo para programarem e fazerem coisas ruins.

O cárcere é nosso câncer, é a nossa ferida. A sociedade não pode deixar de vê-la, retirar-lhe o pus; de fazer a devida limpeza e alimentar o corpo para que ele restaure as células e os tecidos doentes. O que, como educadora, peço? Que nos organizemos, sensibilizemos nossa comunidade e trabalhemos para limpar nossas feridas. O que podem fazer, de útil, nossos detentos, assim amontoados nas celas? O que podemos nós, de imediato, fazer?

Que a nossa cadeia possa ter uma antena parabólica e dispositivos nas celas para que essa comunidade especifica e carente ( nossos detentos) possa sintonizar os canais de TV acima citados. Conheço boa parte da programação da TV Canção Nova. Toda aquela gente trabalha pela evangelização, pela edificação do Reino de Deus, pela recuperação de drogados, pelo resgate do ser humano perdido. Vejo concertos, programas de música pela TV Senado e educação pela TV Cultura. O que são folhetos e palavras distribuídos aos domingos perante a formação que poderia chegar às celas todos os dias? Nossas palavras, aí sim, seriam para orientá-los a procurar melhores programas. Estamos na era da comunicação. É o mínimo que podemos fazer antes que seja tarde. Os presos estão sedentos e famintos, carentes das coisas de Deus. O ser humano é, por excelência, como já se disse, um ser religioso. Resgatemos o ser humano, tornemos melhor e mais seguro o nosso mundo e o de nossos filhos. Contactemos outros cidadãos. Unamo-nos e nos organizemos. Pensemos no que ainda pode ser feito a curto, médio e longo prazo. Acreditemos e trabalhemos. Ou então esperemos acontecer o que não há de ser o melhor. Atenciosamente,

( e aqui eu assinei o meu nome).

Neusa Storti Guerra Jacintho
Enviado por Neusa Storti Guerra Jacintho em 02/10/2008
Reeditado em 29/11/2009
Código do texto: T1207040
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