Carta ao Irmão

A muito não nos vemos e pouco nos falamos, mas analisando bem, quando éramos pequenos, muito pouco nos falávamos. A casa cheia, os problemas do cotidiano, que muitas vezes não sabíamos nem que ocorriam, tudo isso olhando agora parece tão estranho, uma vez ouvi o escritor Ziraldo falar que as crianças de nossa época só percebiam o joelho dos adultos. Sabia que esta é uma grande verdade? - Pois bem, lembro-me de uma senhorinha que batia de porta em porta vendendo cosméticos; era costumeira sua visita lá em casa.Talvez você lembre dela ou como eu, lembre apenas das suas pernas, pequenas e varizentas, nossa, era saber que dona Jorgina viria para que a imagem daquelas pernas viessem à mente, e depois que ouvi a colocação do escritor, entendi como ainda hoje, após tantas décadas e muitas histórias e estórias a imagem é tão real - apenas das pernas, jamais da face; sim mas o motivo dessa carta é por perceber como é diferente a vida das crianças, enquanto a nossa infância girava em torno do dia em que adentraríamos a vida adulta, quando seria possível que os pais nos ouvissem e estudar era obrigação, boletim sempre com notas azuis, ida de pais nas escolas era para resolver apenas grave questão, algumas que resultavam em bolo nas mãos.

Assim crescemos, assim viveu toda uma geração; tínhamos dever e sonhávamos quando crescer voz e diversão.O presente nos revela grandes mudanças, crianças na rua e não na escola, meninos atrevidos para nossa época, gritam, fazem birra e questionam a regra, por vezes quem de fora observa não compreende quem é o pai, a mãe e o irmão, a conversa é de igual para igual. Todos se olham, opinam e até se alfinetam... Imagina esse comportamento em nossa época. Quando filho fazia quatorze anos até trabalhar já podia, mas o salário era o pai ou a mãe que recebia, adulto com criança nada resolvia. Mas ao contrario, o que temos hoje, crianças trabalham e sustentam a casa, tomam decisão, andam sozinhas, pegam ônibus, possuem uma autonomia incrível; enquanto no passado a criança era apenas um adulto que não cresceu, me espanta as classificações atuais, infância tem primeira, segunda e até terceira, depois a tal da pré adolescência, para só depois chegar adolescente de verdade.Que loucura tudo isso, mas esses meninos conseguem sobreviver, graças a Deus, eles têm recursos em suas mãos que “Nossa Senhora”, nem em sonho teríamos tanta imaginação; é celular de última geração, computador para acessar todo esse mundão, enquanto os nossos atlas, tantas vezes utilizados para desenhar mapas à mão. É meu irmão, muitas diferenças, parecem dois mundos, e nós, o que ganhamos e perdemos com tudo isso? Será que valeu a pena não gritar para ser ouvido, seguir tantas regras e deixar muitos sentimentos reprimidos ? Você nem sabe como me sentia na escola primária, não sabe como cheguei ao ginásio, e olha que morávamos na mesma casa,eu não te culpo, pois também não aprendi a perguntar como estava.

Olha que as crianças hoje discutem entre si, resolvem seus problemas e nós perdemos tanto tempo, não conversamos, isso faz muita falta. Sei que inveja é pecado, mas morro de inveja da liberdade que não tivemos, de tudo que nos faltou e da distância que os meninos de hoje mostram tão claramente que geramos. Você não sabe mas eu morria de medo de brincar de esconde-esconde; Lembro-me de ter ficado várias vezes escondido e não lembravam de mim, ficava lá no esconderijo, muito tempo passava, saia e a vida tinha seguido... Ninguém lembrava de nada, já era outra brincadeira que rolava, a mim não perguntavam nada, me sentia invisível e fui recolhendo meus cacos nos cantos, retraindo, me afastando. Se fosse com os meninos de hoje, tenho certeza que sairia do esconderijo dizendo “Vocês perderam o jogo!! A regra diz que se não me acharem eu ganho!!” mas naquele tempo, nem em sonho... Somos irmãos e não somos íntimos, se fossemos conversar hoje, provavelmente iríamos lembrar de brincadeiras e sorrisos, do passado reprimido, ou do que poderíamos ser daqui para frente ? Meu querido, se puder me responda, talvez eu tenha errado tanto que nem percebi o processo desenrolando... parece que acabei de sair do esconderijo e descobri que ninguém está me procurando...

seu irmão saudoso

Renata Rimet
Enviado por Renata Rimet em 19/06/2009
Código do texto: T1656125
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