A Michael Jackson

"Eu estou lhe dando

Três segundos

Para abrir o jogo

Ou me deixar ir"

(Michael Jackson, Bad*).

...

“Bem, eles dizem que o céu é o limite

E para mim é realmente verdade

Mas cara, você ainda não viu nada

Espere até eu atravessá-lo”

(Michael Jackson, Bad*).

Pois é, cara, você o atravessou. Em quanto tempo? Em três segundos?

Pra morrer, basta estar vivo – era assim que minha mãe dizia, até depois de ter completado 80 anos de idade. Mas você se manda daqui aos 50? Então, é verdade: basta estar vivo para dar o passo em falso. Basta estar vivo para o coração bobear.

Soube agora, pela manhã, depois de uma viagem noturna relativamente cansativa, que seu passo em falso era fato e que seu coração houve por bem parar de bater. Imediatamente, lembrei-me de que a mídia, de certo modo, oportunista nas desgraças visíveis, já deveria estar ministrando em nossas veias, ávidas por coisas fora de ótica, overdoses sobre a sua passagem, ao tempo em que a cada três breves segundos uma criança morre de fome no mundo, e não ganha sequer uma notinha de pesar – dessa “grande mídia”, que fabrica seus “grandes” para se fazer hospedeira deles, querendo nos forçar a engolir a idéia de que os “grandes midiáticos” são plasmados como que por encanto, por forças que não as da própria mídia. Mas eu penso que você foi produto da mídia e com ela terá de se haver, até agora, no passo em falso e no coração que já não mais bombeia.

Cara, por conta dessa mesma mídia, sequiosa de fama e cifrão, impiedosamente invasiva, quando pude me dar por gente e passei a compreender as coisas, você já adentrava meus rádios, aparelhos de televisão, depois os computadores e mp’s cujos números não sei onde vão parar – o capital adora a mágica de sempre inventar uma linha inovadora na mercadoria, visando a justificar a necessidade que o capital tem de nos fazer trocá-la... Por conta disso, que por aqui a gente costuma caracterizar como “tá tudo dominado”, entrei juventude e adultecência ouvindo-o e acompanhando as “polêmicas” que lhe davam mídia. Você, mau ou bom, não podia sair dos holofotes. A mídia que o fez tinha de alimentar-se de você, ao tempo em que sustentava a sua supermegaexposição, diuturnamente.

Em que pese essa presença opressiva, dominando tudo, sempre mantive uma boa distância de você. Às vezes, ignorando. Em outras, com indisfarçável desprezo. Em outras, ainda, com fastio, pesar ou saco cheio. Confesso, cara, tenho dificuldade imensa de engolir esses produtos comerciais, colocados ante nossos olhos e ouvidos apenas para renderem mais cifrão. Eu ia lá ser cúmplice disso tudo?

Desse modo, lembro algumas coisas que dizem de você. Parece que foi se exibir, tocando e se apresentando em família, logo aos quatro anos de idade (boa ou má idade para começar a trabalhar?), levado pelo pai. Esse mesmo pai que, segundo você, lhe bateu, e que, segundo seus familiares, também abusava sexualmente de você e seus irmãos. Informações disseminadas, dúvidas alimentadas: onde a verdade nessas histórias?

Você era pedófilo? Não sei. Certa vez, ouvi uma piadinha, na qual se indagava: o que é branquinho por fora, moreninho por dentro e adora criancinhas? Aí o perguntador revelava que era Michael Jackson, evidenciando a nesga de preconceito da piada... (brasileiro adora rir de tudo e essa é uma de nossas melhores virtudes, porque “ridendo castigat mores”... leva a mal não...). Mas, então, foi esse tipo de coisa (verdade ou mentira?) que me fez compreendê-lo como alguém para ficar bem distante de mim – não a verdade ou mentira sobre suas histórias, mas o fato de precisar desse tipo de polêmica para se manter no olho do furação midiático, entende? – repugno tudo o que tentam me empurrar goela abaixo para servir de proveito a um sistema insano e malsão.

Você sofria mesmo de vitiligo? Outra vez, isso é uma grande incógnita. Mas também, nesta hora, e admitindo que você sempre foi alguém longe do meu gosto, o que tenho com isso? O que tenho com isso tudo é o lado humano por detrás desse “rei do pop” – reinado inglório, efêmero, fugaz, peça de marketing apenas. O que me impressiona não é isso de ser chamarisco para o tal mercado do entretenimento, mas, sim, esse humano aí que teve de sustentar uma verdadeira luta para batalhar um lugar entre os humanos – atabalhoado, mas um lutador, como todos nós, os quais, para que venhamos a morrer, basta que estejamos vivos.

Tomara que lá onde realmente as coisas se revolviam e se resolviam, você tenha sido feliz e oxalá tenha podido levar histórias de alegria com você – digo as da alma, as da essência, as do mundo interno, essas que a mídia pode abalar, mas nunca pode ver e, por isso mesmo, nunca poderá mostrar. Se assim é, que lá naquele lugar, o qual transcende o perigo constante de estar vivo e a desdita interesseira por ganho e acúmulo, você possa estar bem.

Não é perda: é passagem, essa durante a qual, agora, penso, você se iguala aos que vão com você, de três em três breves segundos, por conta de nossa desumanidade – esse vergonhoso e animalesco apego à antivida que, lamentavelmente, a mídia não se interessa em ver e nem apresenta disposição de querer mostrar.

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*Tradução Vagalume.