Eterno retorno

Em "A insustentável leveza do ser", de Milan Kundera, fala-se sobre as possibilidades, sobre as escolhas. A vida só é quando vivida; todas as previsões não passam de pensamento; a vida, esse “esboço sem quadro”, simplesmente é.

Há algum tempo, porém, acordei pensando no nosso filho - um filho que não tivemos, um filho que não existe, um filho-ficção, sonho, pensamento, devaneio. Nunca nos beijamos. A amizade - as conversas, os livros, as músicas - é o que nos une.

E apesar dessa ligação distante (distante não é a palavra, porque essa ligação é muito mais próxima que o contato físico puro), imaginei como seria nossa vida de namorados, companheiros e nosso filho; e nem quero ter filhos.

Se eu pudesse viver duas vidas numa só, teria me declarado a você. Mas só uma vida me foi dada. Nós somos uma possibilidade não realizada. Como seria se nos beijássemos, como seria se namorássemos, como seríamos? Seríamos?

Não mentirei: se me fossem concedidas várias vidas, provavelmente eu tentaria achar um homem ou, quem sabe, uma mulher para cada uma delas, e assim esgotaria todos os desejos represados. Pensando melhor, o desejo só é o que é em razão dessa represa, da imposição da escolha, da impossibilidade de realizar tudo. Um desejo realizado é tudo menos um desejo.

A metáfora de Chantal (protagonista de "A identidade", também de M. Kundera), que se imagina uma rosa cujo perfume envolve todos os seres, se apodera de mim. Gostaria de envolver muitas pessoas, prová-las, seduzi-las, ser seduzida. Realizar possibilidades. Mas só tenho uma vida e uma certeza: a de que o homem dessa vida também deixou de lado muitas outras possibilidades para estar comigo, para se engajar nessa relação; sei que ele disse não a muitos olhares, abraços, bocas, camas - embora nunca falemos sobre essas negações (o silêncio é preciso, apaixonar-se não é preciso).

Se tudo fosse possível, se várias vidas me fossem concedidas, muito provavelmente eu não me apaixonaria; eu sequer saberia o que é paixão; ou melhor, esse sentimento e essa palavra não existiriam; da mesma forma, se pudéssemos ter tudo e todos sempre que quiséssemos, não conheceríamos o desejo nem a saudade.

Declarações anacrônicas. Nunca digo o que deveria na hora certa. Acho que é por isso escrevo. Penso muito, falo pouco: as palavras não saem da minha boca naturalmente, então as expulso com esforço, bem depois. Minhas palavras são tímidas, só vêm à tona quando estou sozinha.

Minha verborragia é anacrônica, solitária e também covarde. Meus sentimentos não conhecem minha língua, não conhecem o som: saem, atrasados, escondidos, sorrateiros, pelas palavras escritas. Mas, se para a paixão essa declaração é anacrônica, ela não o é para o amor.

Pathos. Patológico. Paixão. Uma família que não tem nada a ver com amor.

Acho que o aprisionamento da paixão a transforma em amor, essa energia fraterna que liga, une, cria.

Não posso me arrepender de algo que nunca foi, porque sempre há escolhas e sempre as múltiplas possibilidades tem que ser imoladas para que apenas uma se torne real e seja vivida. O peso da escolha é um martírio irrefutável – a opção de não escolher não existe, vez que também é escolha. “O eterno retorno é o mais pesado dos fardos”.

Nunca saberei se e como seríamos. Posso dizer somente que, se a vida, esse “esboço sem quadro”, se repetisse eternamente, sempre escolheria ter você perto de mim.

Fernanda Sier
Enviado por Fernanda Sier em 11/07/2010
Reeditado em 29/07/2011
Código do texto: T2371010
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