Uma carta de Primavera

Hei-de morrer num dia de Primavera,

Para que me possas ofertar flores;

Racemos de miosótis multicores,

Espalhados no manto das quimeras.

Hei-de ter-te - um só dia! - ajoelhado,

Embalando o meu sono sempiterno,

E dos teus lábios um sorriso terno

Aquecerá o meu rosto engelhado.

À cabeceira, a pomba de Picasso,

E um ramo de oliveira no meu seio.

Sei que me farás este galanteio

Ao ouvires os sinos em compasso.

Mas pede que não toquem tristemente

As tão antigas marchas funerárias;

Quero ouvir cantar odes luminárias,

Aquelas que te cantei docemente.

Deixa, depois, junto aos meus pés cansados,

Três laços (dois estão na mia gaveta);

O de Abril, e o de Agosto. O violeta

Está na caderneta dos recados...

Não te esqueças, no lado do poente,

De deixar os meus versos inacabados,

As minhas cartas, e contos penhorados

Às estrelas duma aurora candente.

E das flores que colheres p'ra mim,

Uma não quero ter: o nosso rebento.

Não me o tragas. Seria um sofrimento

Vê-lo, do Céu, murchar num dia assim.

Quero que brindes c’o mel das castas uvas

Quando me deixares no Lavradio,

E na mesa de mármore alvadio

Não derrames, amor, salgadas chuvas.

Peço-te algo mais - enquanto me lembro -

Além de a minha tumba ser um canteiro

Tão lindo como o Parque do Barreiro,

Não celebres, amor, o dia de Novembro!...

Como não quero que uma atra atmosfera

Venha entristecer esse teu semblante,

Escondo, então, na Bíblia da estante

A carta que lerás na Primavera...