Carta a Cecílio Elias Neto (A toga chamuscada)

Cecílio,

Estou em Curitiba e, rotineiramente, tenho lido suas crônicas. Na verdade, reflexões sobre a vida na provinciana Piracicaba que tanto o encanta e o desilude.

Hoje, cedinho, li a história do falecido juiz Luiz Roberto de Almeida. Fiquei imaginando como é que ele, tão probo, pudesse ter aceitado que sua filha se casasse com um notório contraventor e que exigisse, quando na ativa, que fosse chamado de Meritíssimo, etc e tal.

Bem... apenas para dizer o quanto, para mim, é lamentável a posição de vários homens que, por mérito ou por estudo, conquistaram o posto de juiz de direito ou de promotor, acabam chamuscando suas togas com excesso de vaidade e uma dose insuportável de arrogância. Insuportável porque inaceitável. Eu sempre acreditei que a Justiça pudesse ter um maior número de homens honestos. Que a Justiça não fosse apenas a defesa de interesses dos que mais têm, mais pagam, mais aliciam, mais conquistam e menos são honestos, dignos, retos e probos. Claro que há excessões, como há freiras ainda virgens e padres não pederastas ou jornalistas menos burros.

Lembrei-me que, certa vez, por ocasião da ação que o seu primo João Herrmann impetrou contra o "probo" Humberto de Campos (que foi professor dele na centenária Esalq), no episódio das irregularidades (distribuição fraudulenta da merenda escolar nas favelas de Piracicaba nas vésperas da eleição de 96), quando conversei rapidamente com a Beatriz, a sua Beatriz. Eu dizia que acreditava ser possível condenar os fraudadores (dizem até que toda a ação foi orquestrada pelo seu amigo João Maffeis, o Johnny, e o seu atual detrator, o eleito Barjas Negri). E a Bia, com a sensibilidade inata das mulheres, me disse: "Você ainda acredita em Papai Noel?". E não é que, simbolicamente, eu acredito!!!

Então... lembrei-me, também de um episódio - marcante para mim, minha mãe e minhas irmãs, transferida também para meus filhos e sobrinhos - onde meu pai se defrontou com um jovem magistrado, em meados dos anos 60, na pequena cidade de Loanda, no Paraná. Os nomes dos personagens: Elzeário Santos Viana, meu pai, então com cerca de 40 e poucos anos; Ciro Maurício Crema, o jovem juiz, de menos de 40 anos, na época.

Morávamos em Paranavaí, cidade há 90 km de Loanda. Nesta cidade meu pai tinha dois pequenos sítios onde plantava café. Periodicamente ele se mandava para lá e ficava acompanhando o trabalho dos seus meeiros no trato com a plantação e de onde, com enorme dificuldade, ele mantinha sua família - eu, minha mãe e 4 irmãs. Ele ia para Loanda ficava vários dias e, no final da tarde, numa sexta-feira, ele pegava sua velha bolsa surrada de couro e ia em direção da rodoviária embarcar no ônibus da Viação Asa Branca para Paranavaí.

Meu pai, naquela época, já estava com avançado processo de perda da visão, por ter catarata nos dois olhos e que, aguardava, um momento mais propício para fazer uma difícil cirurgia. Ele chegou mais cedo na rodoviária e se dirigiu a um quitanda para comprar requeijão. Ao entrar, esbarrou numa mulher que saia apressada da quitanda. Nem deu tempo de pedir desculpas e nem perceber quem era a tal mulher.

Tendo que esperar o ônibus por umas 2 horas, em menos de 40 minutos, meu pai que era conhecido por Baiano, Baianinho ou Zezé, foi surpreendido pela chegada do cabo João Catiguá, um robusto soldado da Polícia Militar paranaense. O militar o abordou dizendo: "Baiano, tem uma bronca para você resolver lá no Fórum. O doutor juiz pediu que eu o levasse lá, imediatamente".

"Sim, vamos lá 'otoridade', vamos sim...", respondeu meu pai em tom de brincadeira. "Vamos, mas terá que ser rápido, pois meu ônibus deve sair em pouco mais de uma hora..."

O Fórum ficava há pouco mais de 200 metros da Rodoviária. Meu pai e o João Catiguá se dirigiram ao prédio do Fórum. Na chegada meu pai foi recebido por um assustado cartorário - o Fuad Jarrus - amigo do meu pai de longas jornadas de pif-paf e caixeta. "Mas o que foi que você fez, Baiano?", perguntou Jarrus. Meu pai se limitou a sorrir. E foi conduzido pela "otoridade" para o pequeno gabinete do juiz. Catiguá bateu à porta, abriu-a e disse: "O homem está aqui...!!!"

Meu pai entrou e percebeu que estavam na sala outras 3 pessoas, uma mulher e dois homens. Logo que meu pai passou pela porta o jovem juiz se levantou e deu um berro: "Então, seu velho safado... como é que você fica passando a mão em mulheres por aí???"

Meu pai que caminhava com certa dificuldade pois tinham alguns calos em seus pés e por ter a visão comprometida, deu uma rodopiada no calcanhar e chutou com força a porta, pregando-a no batente e quase arrancando a mão do cabo Catiguá que ficara do lado de fora. Meu pai caminhou alguns passos diretamente na direção do juiz e, para a surpresa deste e dos demais presentes, disse:

"O senhor não tem o direito de me tratar assim. Não sou um velho safado...Não concordo com o tratamento e vou sair daqui com a seguinte decisão. Darei 15 dias para o senhor se retratar e retirar esta ofensa. Caso contrário, voltarei aqui para matá-lo..." e calmamente caminhou até a porta, abriu-a e foi em direção à rodoviária onde, logo a seguir, embarcou no ônibus para Paranavaí.

Esta história eu somente fiquei sabendo, anos depois, contada por um amigo do meu pai e confirmada por ele, nos mínimos detalhes.

Meu pai foi a Paranavaí e, dias depois, passou a receber visitas de pessoas de Loanda - onde ele era muito conhecido. Todos estavam preocupados com a possível reação dele, já que ameaçara de morte o jovem juiz de Direito. Meu pai dizia, sempre: "Se ele não se retratar e pedir desculpas eu o matarei mesmo!".

Aconteceu uma verdadeira romaria à minha casa, mas, como meu pai tinha muitos amigos, aquilo passou despercebido por todos nós, eu, minha mãe, irmãs...

Meu pai tinha um amigo que era delegado de polícia em Paranavaí, o coronel PM João Baptista Lopes, de família tradicional no Paraná. Meu pai contou a ele o ocorrido e o experiente coronel disse que já havia passado por situação semelhante que o marcara muito. Contou que prendeu, certa vez, um homem do campo por ele estar com uma arma na cintura e foi logo dando-lhe uns tapas... E, ao revistar o homem, percebeu o enorme erro que cometera. O coitado e assustado roceiro tinha, na cintura, uma enorme espiga de milho, que ele usava para retirar suas palhas para fazer seu cigarrinho de fumo de corda.

Meu pai ouviu muitos conselhos, mas estava decidido. Dias antes da data marcada, meu pai recebeu a visita do Fuad Jarrus que lhe disse estar o juiz decidido a rever sua posição, mas que esperava compreensão dele com relação a não levar avante a ameaça.

Elzeário Santos Viana se arrumou, colocou uma arma emprestada na sua velha e surrada bolsa de couro marrom e foi em direção a Loanda, onde todos estavam inquietos e curiosos pelo desfecho do episódio. Meu pai desceu na Rodoviária, no horário combinado, e foi resoluto em direção ao prédio do Fórum de Loanda. Lá, recebido novamente por Fuad Jarrus e pelo agora mais assustado Cabo João Catiguá, dirigiu-se ao gabinete do juiz Ciro Maurício Crema e entrou. Lá estavam, em pé ao lado da mesa do juiz, a tal mulher que esbarrara com meu pai na quitanda, o marido dela, um antigo contador de uma máquina cafeeira e um outro homem que meu pai não soube quem era. Meu pai entrou e o juiz, sem delongas, foi logo dizendo que havia cometido um enorme equívoco, que reconhecia no meu pai um homem honesto e decente e, sem antes passar um "sabão" na mulher, no seu marido e na tal testemunha, pediu formalmente desculpas, se retratando pelo modo com que havia se dirigido ao meu pai.

Crema extendeu a mão, pediu desculpas e, meu pai, placidamente disse aceitar a retratação, se despediu e caminhou novamente para a rodoviária onde, 3 horas depois embarcaria para Paranavaí.

É isso, Cecílio. A toga do jovem juiz havia sido chamuscada pela arrogância e pela vaidade. Meu pai sentira que a ofensa era séria demais para ele aceitar como justa e verdadeira. Agiu como os homens de bem e verdadeiramente "probos" devem agir. Foi para o seu limite. E conquistou não só o respeito de todos em Loanda, como marcou, indelevelmente, em mim, em minha família, a certeza de que temos que levar nossos direitos aos limites, sem, contudo, ofender ninguém, respeitando a liberdade e o direito de todos.

No meu livro de poesias, o Trinta Toques, eu escrevi uma historinha sobre as últimas horas de meu pai, que morreus aos 49 anos, em 1971, no dia 27 de maio, numa noite de frio e incertezas, depois de eu haver lido, para ele, um trecho dos Sermões do Padre Antônio Vieira, que aqui reproduzo, em latim, parte deste texto.

"... Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas nã ferem. A funda de David derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus. As vozes da harpa de David lançavam fora os demônios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua. Por isto Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar faz-se com com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras, para falar ao coração, são necessárias obras".

É isso... você é um semeador, não um pregador, Cecílio. Eu respeito sua obra. Os resultados, injustos e indignos, muitas vezes, são a real dimensão de sua importância para a história desta Piracicaba despreparada e mal tratada por tantos desatinos pelo poder e tantas aventuras eleitoreiras que só fazem, hoje em dia, sua querida Piracicaba, antes a Atenas paulista, para se transformar apenas paulista.

Um abraço e meu respeito, meu carinho e meus agradecimentos, pois se hoje sou jornalista, devo isso a você e ao meu pai que vibrou muito mais quando eu mandei minha primeira matéria publicada no falecido O Diário, já que uma semana após me ver funcionário do Banco do Brasil, ele teve um fulminante infarto e morreu.

Rogério Viana

Rogério Viana
Enviado por Rogério Viana em 03/09/2005
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