Um Olhar Marajoara sobre a APA Marajó: teimosias

Belém, 03 de maio de 2016.

Caríssimos e caríssimas do Colegiado de Desenvolvimento Territorial do Marajó,


Primeiramente preciso informar que a escolha do título desta carta às senhoras e aos senhores decorre de minhas inquietações sobre a retomada das discussões sobre a Área de Proteção Ambiental do Marajó (APA Marajó), as quais despertaram-me o velho sentimento de teimosia (defeito que sempre tive, mas que nos últimos anos vem curiosamente diminuindo segundo meus pares) em não debater o tema se algo não estiver na inteira linha de raciocínio de um processo, no caso aqui, a de ordenamento territorial e ambiental. Tenho dificuldades de debater lacunas se as mesmas forem abissais. Entretanto, diante de tudo que vem acontecendo no país, sou forçado a rever a posição, pois a falta de diálogo é um mal que vem assolando a população. As opiniões remetem em sua maioria argumentos do tipo oito ou oitenta, bem ou mal, pecado ou virtude, o que se chama na filosofia de maniqueísmo. Não é bem assim, há de se analisar com calma, ser construtivo, sem ódio das coisas ou divergências. Indignar-se sim, odiar jamais. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra.


Nos últimos meses, o Instituto de Desenvolvimento Florestal e Biodiversidade do Estado do Pará – IDEFLORBIO – trouxe para a agenda marajoara a implementação da Área de Proteção Ambiental do Marajó, prevista na Constituição do Estado do Pará de 1989, artigo 13* , parágrafo 2º, citando que “...O arquipélago do Marajó é considerado área de proteção ambiental do Pará, devendo o Estado levar em consideração a vocação econômica da região, ao tomar decisões com vista ao seu desenvolvimento e melhoria das condições de vida da gente marajoara...”. Apesar deste tratamento pelo Estado, não houve ainda a regulamentação do 13º artigo da Constituição Estadual, o que causou estranheza durante a pesquisa, pois outras APAS no Estado possuem marco regulatório** específico. Mas antes de tudo, é necessária a explicação do que é uma Área de Proteção Ambiental.


Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (lei 9.985, de 18 de julho de 2000), a Área de Proteção Ambiental - (APA)

“...é uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.
§ 1o A Área de Proteção Ambiental é constituída por terras públicas ou privadas.
§ 2o Respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma Área de Proteção Ambiental.
§ 3o As condições para a realização de pesquisa científica e visitação pública nas áreas sob domínio público serão estabelecidas pelo órgão gestor da unidade.
§ 4o Nas áreas sob propriedade privada, cabe ao proprietário estabelecer as condições para pesquisa e visitação pelo público, observadas as exigências e restrições legais.
§ 5o A Área de Proteção Ambiental disporá de um Conselho presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes dos órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e da população residente, conforme se dispuser no regulamento desta Lei.


Para a utilização de seus recursos naturais, é preciso o Plano de Manejo da Unidade, regido pelo Decreto da Presidência da República 4.340, de 22 de agosto de 2002, que regulamenta tais instrumentos de gestão. Em seu artigo 12*** , menciona-se que seu Plano de Manejo da unidade de conservação deve ser elaborado pelo órgão gestor e aprovado em portaria do órgão executor. Diferentemente das Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), onde o conselho é deliberativo para aprovar ou não o Plano de Manejo, ou seja, tal conselho decide, o planejamento nas APAS passa por, no entendimento destas leis e regulamentos, um caráter consultivo.


Uma vez expostas as informações acima, delineio meu raciocínio de maneira a recomendar ao CODETEM alguns cuidados no manejar deste tema, que uma vez bem conduzidos, pode trazer ao Marajó muitos benefícios socioambientais e econômicos. Ao contrário, sem a devida avaliação das vantagens e desvantagens, pode prejudicar o muito já prejudicado desenvolvimento regional do ponto de vista da amplitude do que é melhorar as condições de vida, no pensamento justo em que meio ambiente, capitais financeiros e bem-estar social e precisam estar em equilíbrio.


Hoje o Marajó detém cerca de 30% de seu território de 10,4 milhões de hectares já destinados, seja em assentamentos agroextrativistas, reservas extrativistas, territórios quilombolas, decretos de afetação e outras unidades de conservação**** , modalidades fundiárias predominantemente federais. Municípios como Afuá, São Sebastião da Boa Vista e Gurupá tem a peculiar situação de possuir hoje mais de 80& de sua área regularizada em termos fundiários. Para estas localidades, pode-se dizer que a segurança da terra finalmente chegou. Contudo, locais como Chaves, Cachoeira do Arari, Santa Cruz do Arari, Bagre e Ponta de Pedras carecem ainda de muito trabalho neste sentido. Estes avanços repercutem na capacidade de proteger o meio ambiente, diminuir o desmatamento promover justiça socioambiental.


Qual minha primeira dúvida sobre a APA Marajó? Quando fui informado do começo das atividades de campo para visitar os municípios na ação de sensibilizar a população e seus dirigentes em relação à importância da APA, fiquei pensando se não seria melhor um grande nivelamento da atual situação fundiária marajoara. Pois o próprio Governo Estadual precisa estar a par de informações neste sentido para assim propor uma gestão mais robusta. Sem a leitura do processo de segurança da terra, nem dos avanços das secretarias municipais de meio ambiente, corre-se o risco da APA como diriam os futebolistas “chegar sempre atrasada no lance”. Não treinou, não se informou e pode cometer graves erros, tendo um conselho consultivo como contraponto. Repito, um conselho consultivo como contraponto. Na questão do Parque Estadual Charapucu em Afuá, criado 1 ano depois do decreto de assentamento agroextrativista do INCRA de mesmo nome (chegou atrasado no lance!), cujo quiproquó resultou em ação do Ministério Público Estadual para tentar dar voz e direitos às dezenas famílias locais, torna-se evidente que se faça um grande movimento de nivelamento sobre o retrato do Marajó em termos de ordenamento territorial. Detalhe: agora são os 10,4 milhões de hectares envolvidos de uma só vez.


O próprio Estado do Pará precisa fazer mea culpa no que diz respeito à sua participação na segurança da terra, pois além do equívoco Charapucu, conta com apenas 1 assentamento agroextrativista estadual e 2 territórios quilombolas oficialmente reconhecidos (estes em Gurupá). Somados ao decreto de afetação 579, de 30 de outubro de 2012, que destinara cerca de 500 mil hectares em benefício de mais de 2 mil famílias portelenses, as ações do Estado resultam em 670 mil hectares, 20% de toda área já destinada no Marajó. Por isso, conhecer avanços e reconhecer erros é preciso.


Ao acompanhar os desdobramentos e agenda do IDEFLOR-Bio, percebi que Gurupá, Melgaço, Bagre e Portel não fazem parte dos locais a serem visitados, pior, não fariam parte da APA Marajó. Qual-o-quê??! Permitam-se fazer uma comparação com a disputa entre Rio Amazonas e Rio Nilo, na decisão de qual seria o maior rio do mundo. Jacques Costeau, um dos maiores desbravadores do século XX, aceitou o desafio de provar à humanidade que o Rio Amazonas seria o maior rio do planeta, de forma a mudar os bilhões de livros de geografia espalhados pelo mundo. Jacques Costeau viajou não só a calha do rio Amazonas, mas percorreu seus afluentes, estudara o que é de fato um rio, uma bacia, o volume de água envolvido. Ao final de sua expedição, foi tácito ao afirmar à academia francesa (que torciam o nariz pra ele, acho que por inveja, sei lá) que em conjunto da obra, o Rio Amazonas era sem dúvida o maior rio da Terra, sendo braços, pernas, vidas. Perdia para o Nilo em extensão, mas ganhava de sobra quando a ideia é ser de fato um Rio-Mar!


Da história acima, faço uma analogia: o que é o Marajó? O que os coloca na casa das dezenas de milhões de hectares? Talvez seja sua abrangência, suas ilhas a perder de vista, mas que fazem parte sim do mesmo arquipélago. Como não levar em consideração a Ilha Grande Gurupá, Ilha do Urutaí, Ilha do Gurupaí, encostadas nas Ilhas de Breves e de Afuá. Entre a Ilha Seretama e Ilha do Meio, tudo um mesmo ambiente insular. Ilha das Cinzas (Gurupá) vizinha à Ilha do Pará (Afuá). Portanto, Gurupá em seus 70% de áreas insulares faz parte do arquipélago. Como não levar em conta que mesmo a cidade de Bagre fica em uma ilha? Ali não muito longe da Ilha das Araras, em Curralinho. De enchentes e vazantes até boa parte do município, até onde aguenta o rio Jacundá. Então Bagre também faz parte do Arquipélago do Marajó. Com pode Melgaço ficar de fora? Pois ali está entremeada suas ilhas com as do furo de Breves, onde começa um, onde termina outro, eu só saberia se vivesse todo dia ali. Melgaço faz parte sim do arquipélago. Portel além das ilhas que dialogam com o Furo de Breves, tem como Melgaço, baías que juntam terra e águas do estuário amazônico. Também faz parte do arquipélago. Então a APA tem 16 municípios ambientalmente dispostos para seu debate. Tudo bem, se não convenço nos aspectos físicos e distribuição das ilhas, que tal olharmos a situação socioeconômico e política? O Decreto Presidencial de 25 de fevereiro de 2008 estabelece o Território da Cidadania Marajó composta dos municípios, a saber: Afuá, Anajás, Bagre, Breves, Cachoeira do Arari, Chaves, Curralinho, Gurupá, Melgaço, Muaná, Ponta de Pedras, Portel, Salvaterra, Santa Cruz do Arari, São Sebastião da Boa Vista e Soure. O Próprio Decreto Estadual 1.066 de 19 de junho de 2008 estabelece o Marajó como uma das Regiões de Integração do Estado. Por isso, tanto os aspectos geográficos (e as ilhas fazem a interligação), quanto políticos mostram a mesorregião do Marajó como um Território a ser respeitado nos seus 16 municípios.


Uma terceira dúvida vem da própria gestão ambiental, cujo teste foi a administração do Cadastro Ambiental Rural, o CAR, pelo Estado. Com inúmeras reclamações, o Sistema Integrado de Monitoramento e Licenciamento Ambiental - Modulo Público (SIMLAM) ao gerenciar tal cadastramento mostrou como esta ferramenta ambiental (não obstante ser fundamental para a determinação dos passivos ambientais, das áreas de reserva legal e das áreas de preservação permanente) foi capaz de provocar conflitos agrários. Sem a preocupação com a verificação da posse mansa e pacífica, abriu-se a porteira para inúmeras tentativas de intimidação de trabalhadores e trabalhadoras agroextrativistas por meio do CAR, além da sobreposição em áreas já destinadas como os assentamentos agroextrativistas do INCRA, numa clara intenção de grilagem***** . Mesmo no tratamento justo de quem vive na terra, o Estado do Pará não ofereceu condições materiais e de pessoal para que entidades como a EMATER pudessem atender a agricultura familiar e as comunidades tradicionais que vivem sobretudo da floresta neste importante cadastro. Este sim deveria ser um assunto transversal no debate inicial da APA, o que não percebemos nesta etapa de base.


A resolução 120 do COEMA, de 28 de outubro de 2015 lançou marco regulatório que afeta toda gestão ambiental no Pará, e por conseguinte, no Marajó. Tão decisiva que é, mostrará a capacidade dos municípios em garantir a conservação dos recursos naturais nas próximas décadas. Então, por que não ter este nivelamento após as discussões de ordenamento territorial? Tenho certeza que muitos gestores municipais gostariam de trocar ideia e apresentar seus resultados de trato com as atividades de impacto local, conteúdos formidáveis para compor este diagnóstico da APA Marajó. Mas espera o Estado do Pará sensibilizar primeiramente o Marajoara pela APA. Depois discuti o Conselho. Quem deve primeiro reportar o quê? Talvez o Marajó deveria descrever-se primeiro, “olha Estado do Pará, eu que sou uma das gêneses do paraense****** (por isso mais respeito, por favor) sou assim ou sou assado, ah você tem uma proposta interessante? Legal, tenho isso, mais isso, mais isso. Quem me deu? O Governo Federal. Só 12 participam? Não topo, só se for os 16. Consultado? Você é louco? Eu decido!”.


Para não parecer prosaico demais, caríssimos e caríssimas do CODETEM, recomendo para vossos cuidados:
• Entender que o SNUC diz ser a APA formado por um Conselho Consultivo e que qualquer situação variante pode não estar em consonância com as leis federais******* ; há de serem avisadas as lideranças sobre seus prós e seus contras quando estiver em cheque a instalação de grandes obras na região;
• Defender e construir a regulamentação de maneira participativa do artigo 13º da Constituição do Pará que indica a APA Marajó, pois do jeito que está, a própria APA fica sem fundamentos e regimentos como uma casa sustentada por pés de aninga;
• Defender que sejam todos os 16 municípios contemplados nas discussões da APA Marajó;
• Realizar uma profunda análise das diferentes modalidades fundiárias existentes no Marajó e suas respectivas maneiras de praticar a gestão ambiental;
• Realizar uma profunda reflexão sobre os instrumentos previstos no Código Florestal de 2012, principalmente no que tange ao Cadastro Ambiental Rural;
• Realizar uma profunda avaliação dos efeitos das leis que dão aos municípios marajoaras a responsabilidade de gerir as atividades com impacto ambiental local.


O delineamento acima descrito é uma forma de contribuir indiretamente com o ordenamento ambiental e territorial no Marajó. Estive nas equipes de campo e aprendi muito com vocês durante a luta pela terra nos últimos 15 anos. Concentrei-me ultimamente para estudar o Cadastro Ambiental Rural. Ambas as tarefas são difíceis e exigem esforço. Com o advento do debate da APA Marajó percebi-me cansado, pois chega um momento em que você fica tão indignado com a desconexão de lacunas/avanços ambientais e fundiários vistos pelo Estado do Pará, que o melhor é dar um tempo para ter um novo fôlego. E não tem nada a ver com os técnicos do IDEFLOR-Bio mobilizadores dos eventos, nada não, estão a fazer seu trabalho. O problema é a droga da clarividência de ver os processos dos altos tomadores de decisão em curso (do gabinete do Governador pra cima), num período de neo-conservadorismo que parece inevitável diminuírem os ganhos sociais e ambientais dos menos favorecidos. Isso incomoda. Para isso tem de haver luta.


Por isso, decidi no tema APA MARAJÓ ficar de longe observando as jogadas dos enxadristas, colaborando sempre com o CODETEM. Só peço, senhores, que mantenham a unidade marajoara.

Um último alerta:

Governo é governo.

Sociedade é sociedade.


Marajó é Marajó.


Obs: Fiz-me contradição nessas últimas sentenças, sendo maniqueísta. Mas afinal, nos argumentos acima, estarei totalmente certo? Estarei totalmente errado? Com vocês...


Notas:

(*) No artigo 13 são descritas as áreas pertencentes ao Estado do Pará: “...Incluem-se entre os bens do Estado do Pará:
I - os que, atualmente, lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos; II - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma de lei, as decorrentes de obras da União; III - as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros; IV - as ilhas fluviais ou lacustres não pertencentes à União; V - as terras devolutas não compreendidas entre as da União; VI - os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio e os rios que têm nascente e foz em seu território, bem como os terrenos marginais, manguezais e as praias respectivas (grifo nosso).

(**) Podemos aqui citar como exemplos a APA Algodoal Maiandeua em Maracanã, criada através da Lei 5.621, de 27 de Novembro de 1990 (publicado no DOE 06/11/1990); e a APA Triunfo do Xingu, criado por Decreto Governamental nº 2.612, de 04 de dezembro de 2006 (publicado no DOE 07/12/2006), localizada nos municípios de São Félix do Xingu e Altamira.

(***) “... O Plano de Manejo da unidade de conservação, elaborado pelo órgão gestor ou pelo proprietário quando for o caso, será aprovado: I - em portaria do órgão executor, no caso de Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural, Refúgio de Vida Silvestre, Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva de Fauna e Reserva Particular do Patrimônio Natural; II - em resolução do conselho deliberativo, no caso de Reserva Extrativista e Reserva de Desenvolvimento Sustentável, após prévia aprovação do órgão executor...”.

(****) Fiz resumo dos resultados fundiários na análise Segurança da Terra e da Água: Marajó, disponível no site http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/5574389

(*****) Para mais informações, checar o texto Grilado no link http://meioambienteacaiefarinha.blogspot.com.br/2015/10/grilado.html

(******) Meu colega Mauro Monteiro de Melgaço fala que o Marajoara é a gênese do paraense. De fato, se pensarmos onde começou o Pará, na pax de Mapuá segundo José Varella (http://gentemarajoara.blogspot.com.br/2013/08/por-que-o-brasil-precisa-saber-da-pax.html ), em Breves, acho bem provável Mauro ter razão.

(*******) Soube da existência de uma APA com Conselho Deliberativo próximo à cidade de Belém, acho interessante e sou um dos primeiros subversivos a defender a decisão da sociedade local, mas também reconheço que antes de iniciar uma APA neste sentido é preciso primeiramente modificar o marco regulatório. Caso contrário, corremos o risco de aplicar a “Lei de Moro” (o ato de tirar leis da própria cabeça, a despeito dos direitos constitucionais só para aparecer).