Sentimentos de uma Carta

Mande notícias do mundo de lá / Diz quem fica

Me dê um abraço, venha me apertar / Tô chegando

Coisa que gosto é poder partir / Sem ter planos

Melhor ainda é poder voltar / Quando quero

A escrita pode dispersar o ódio. Declarar a paz. Incitar os revoltosos; cravejar de verdades os acomodados. Virar o Planeta de perna para o ar. Revolucionar o mundo.

Nunca sentei numa cadeira de escola; nunca estudei uma vírgula; nunca soube soletrar uma sílaba, sequer, mas exercia várias atividades profissionais, comunicava constantemente com minhas amigas no outro lado dos oceanos, viajei boa parte do mundo e através da mímica, falo e interpreto mais de 501 idiomas. Uma polímata? Não, garantidamente, não! Minha humilde modéstia não permite tal associação; quando muito, cumprindo com meu dever, era prestativa e socialmente, usual.

Aos longos do anos e em plena travessia de vida, quantos amores uni! Quantos amplexos apertados e ósculos selados pelas línguas transportei! Quantas lágrimas de adeus molharam as páginas e o envelope! Quantos sorrisos francos entreguei em mãos! Em plena atividade, era como se eu fosse a metade construtiva do casario. Arquiteta de sonhos e realizações; tudo, tudo, saía de dentro de mim, como um sopro aliviador do coração. Pura, prazerosa e terna felicidade.

Quantos sonhos sonhados; planos planejados; ilusões desfeitas dentro de um minúsculo envelope. Sem jamais bisbilhotar os assuntos alheios, quantas idas e vindas, levando e trazendo os fragmentos de vidas perdidas; pedaços de vidas ainda vívidas; nesgas de vidas esquecidas. Ao chegar o local endereçado, ficava sabendo que havia levado para o destinatário retalhos de compromissos escritos que nunca foram costurados nas colchas da paixão. Quanta desilusão!

Lamentavelmente, os retalhos nunca tornaram-se reais. Palpáveis. Palatáveis. Taparam, aliviaram, aqueceram corpos em noites invernais. Dando a César o que era de César por direito, transportamos a efusividade da evolução e alegria, mas não deixamos de carregar o desgosto, a agrura, o desprazer, a tristeza, a cobrança judicial. Deveras, nessas andanças promovidas pelo nosso Deus mund`afora, aprendi que o destino é a medida exata, em milímetros; e o peso certo, em gramas, da cruz que cada vivente carrega.

Às vezes me bate um sentimento de tristeza e pesar, em saber que eu transportava a cruz do destinatário, ou mesmo do remetente. Não esqueço-me da ocasião em que fui posta na mão de um destinatário e imediatamente, em menos de um minuto, as lágrimas de seus olhos prostraram sobre os meus pés: "Fim, é o fim amiga linda! É o fim de todos os planos elaborados, meu único amor; o fim"!

Senti-me tão fragilizada, tão sensibilizada com a reação no semblante da pessoa, que não deixei de pensar, se eu era cúmplice no "fim dos planos elaborados".

Uma ardência, um aquecimento, uma labareda fervente subiu pelo meu corpo. Flecha disparada contra o meu coração, não sabia se chorava ou se sumia em disparada. Confesso que foi uma das piores, se não a pior, experiência que vivenciei. Sentimento não se mede, senti; mas foi pior que a dor da morte. Estacada e ereta encostada no batente da porta, sem dizer uma palavra vocalizada, sequer; suspirando fundo e mirando, assediosamente o horizonte, falei com o coração: "o que faz o encontro e a despedida de amores que se perdem nos caminhos da desilusão!?

Tudo acontece porque uma carta atira pedras no lago e observa o deslocamento da onda. Em contrapartida, uma carta se culpa; e a culpa é um leão rugindo ferozmente por dentro, uma tigresa, visceralmente, esfomeada. Um sentimento, tanto nostálgico e saudosista, quanto devorador; e a culpa senhor Destinatário e Remetente, é dualista. É amor recolhido; aquele que jamais poderá ser declarado e resolvido por mim, ou por nós!

Decrépita, envelhecida, perdi meu valor material, como é determinado pelo tempo, mas mantenho-me espirituosa de valores íntimos. Sou peça de museu amarelada nessa gaveta que é aberta uma vez hoje e a outra, sabe-se lá quando; entretanto, em tempo, ainda nutro amor próprio por mim.

Amor é a palavra que mais transportei. Mas o que é amar? Amor, compaixão e gratidão: falam-se deles em todos idiomas, em todos shoppings, em todos estádios de futebol, em todos natais, mas ninguém dá o que não tem.

Todavia, ainda acredito na tríade: amor, compaixão e gratidão; sei que não se encontra em qualquer esquina, mas ainda acredito que ainda haja um pouco de virtude, profícuas e benévolas virtudes, no âmago de quem escreve uma carta. E se isto não for o universo salpicado de estrelas, é quase a galáxia enluarada, e fará com que meus pulmões respirem por muitas e muitas décadas. Quem escrever à mão, além de experimentar sentimentos transbordantes, um dia irá dar-me razão.

O restante, deixe por minha, ou nossa conta. Sem preguiça, sem uma gota de indolência e sem demora, retornaremos aonde as emoções e os sentimentos verbalizados em palavras, nunca estiveram. Unir corações e almas, ainda é, literalmente, o meu, o nosso, papel...; social, familiar e humano! Por isto, treine sua caligrafia e escreva uma carta de próprio punho, e saberás quais são os valores cobrados para manter as tonalidades de uma amizade honesta e sincera. Afinal, o valor dado a uma carta por quem a envia, é o mesmo apreço dado por quem recebe; ou seja, boas lembranças e sólidas recordações de um filme passado que o cinema cotidiano não reprisa mais.

Tudo, em tudo mesmo, criam-se teias de aranha nas bordas e picumãs nos interiores, exceto no que carrego dentro de mim e divido com todos os remetentes e destinatários de cartas: "Ventos e escrita biográfica da vida, por que se aliam, fazem pacto com a brevidade!?"

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 09/01/2018
Reeditado em 10/01/2018
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